Não negocio com terroristas, dizia para Nah. Durante o café da manhã, enquanto Nah insistia em extrair mais algumas gotas de ketchup do frasco enrugado, Teresa repetia o de praxe:
- Já arrumou aquela bagunça, querida? Não me venha com guerrilhas fantasiosas outra vez, certo?
- Já vou... - Nah respondia bocejando, olhando para os lados à procura de uma saída de emergência. Todavia, sua mãe tratava de mantê-las fechadas.
- Termine de comer e vá. Já se passaram cinco minutos, sabia?
- Não posso – Nah dizia.
- A Nah de cinco minutos atrás não existe mais. Mortos saldam suas dívidas Dona Teresa - Nah ria. Aprendera um pouco de retórica nas apostilas de filosofia do cursinho.
- Bom, então espero que a nova Nah saiba lavar a louça e passar a roupa – Teresa dizia lentamente, saboreando cada sílaba.
- Quando minha mãe virou a madrasta má?! - dizia estupefata, Nah. Teresa colocava os óculos escuros, pegava a bolsa, virava-se de costas e, acenando dizia:
- Te vejo mais tarde...Tenha um bom dia Cinderela – pendurava avisos na porta do banheiro, da geladeira e do quarto de Nah antes de ir para o trabalho.
O acontecimento despertara o interesse da Nostalgia: Nah lembrou-se da mãe que sempre lhe repreendia por falar com estranhos. A mãe continuava a lhe repreender, pregar-lhe sermões com um martelo enferrujado, entretanto, usava meios mais ortodoxos que as broncas e puxões de orelha da infância. A mãe de Nah não se conformava com as escolhas da filha. Nah saira de casa dois meses atrás e não voltara - não ligava, tampouco retornava as ligações, enviava cartas ou e-mails. Nah chamava de independência o que sua mãe chamada Teresa, chamava de Imprudência. O pai de Nah se separara de sua mãe muito cedo, quando ela tinha apenas seis anos de idade. A mãe de Nah aceitou o divórcio sem relutância, já que a relação desgastara-se bastante e, incomodava-lhe a presença dos pés frios de um estranho em seus lençóis. Ironizava a situação nos jogos de cartas de sexta-feira à noite. Dizia para as amigas que não precisava de vibradores orgânicos. Teresa as convencia de que estava certa e o melhor que faziam, era continuar jogando cartas ao invés do jogo da Verdade. Nesse jogo Teresa sempre perdia. E Teresa odiava perder. Preferia enfrentar o azar no pôquer, as risadas altas e as provocações, o curinga resenhado, os ases, ouros, espadas, pedras e paus, truques e trapaças de Verônika, vizinha e convidada em casos de emergência; quando nem toda lista telefônica podia resolver. Verônika era a substituta natural de Irene, sua irmã gêmea, quando Irene se encontrava perdida e indisposta, flertando com a Depressão no fundo de um poço escuro 4x4. Irene era negra, muito alta, tinha 1, 86 centímetros de altura e aspirações, tornozelos bem torneados, olhos cor de mel e uma voz que encantava e intimidava homens e mulheres em proporções. Ela estudava canto lírico desde os oito anos, mas como faltavam óperas na região, ganhava aplausos e a vida em clubes noturnos de soul e jazz da cidade. Verônika era meio centímetro mais alta, um minuto mais nova e discutia relacionamentos com estranhos no elevador. Morava no terceiro andar do edifício, dois acima da irmã mais velha. Nah considerava-lhe sua tia adotiva favorita. Verônika ensinara Nah a tocar violão e se maquiar. Também lhe ensinou alguns palavrões, a calcular e a desenhar dragões. Não tivera tempo de ensiná-la a jogar pôquer. Lamentava-se por isso. Coube a mãe de Nah ensiná-la a mastigar direito a comida, escovar os dentes, fazer waffles e panquecas de queijo e que óculos escuros e protetores solares são indispensáveis. E que não adiantava, a existência de duendes revolucionários no colchão, um pretexto com o aval da Preguiça, não funcionaria outra vez – Nah teria que arrumar o quarto ou sofreria com castigos e sanções severas. Citações do estatuto de defesa dos direitos da criança e adolescente, acusações de fascismo, greves de fome nem ameaças de atentados aos bons costumes, comoviam, convenciam Teresa de que ela precisava ser mais flexível com a filha.
Nah sentou-se nos fundos do vagão, num assento reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes, passageiros com crianças no colo e, extraordinariamente "pessoas socialmente indispostas". Nah tramava uma maneira de tornar sua conduta legalmente aceita - seus olhos vagavam pelo vagão, enquanto imaginava sua licença usurpada ilustrada ao lado das demais. Nah tinha fobia social. Parecia bastante satisfeita hoje, afinal, havia apenas cinco pessoas naquele vagão. Um milagre parecido só feriados prolongados e os minutos finais do fim do dia poderiam proporcionar. Um homem de meia-idade, calvo, com um jornal aberto, sentava-se do lado oposto de Nah. Folheava o caderno de negócios apressadamente. Nah espiava o verso do jornal, assim que o homem dobrava as páginas. Ela tentava entreter os olhos inchados. Gastara o último frasco de colírio, poucas horas antes, durante uma crise repentina de renite. O caderno de negócios não fica longe das palavras cruzadas, imaginava. Bastava um pouco de paciência e, logo, logo estaria testando todo conhecimento que adquirira no Google. No entanto, o homem deteve-se numa página, observou cuidadosamente os índices da bolsa de valores e, deixando um "tsc" escapulir entre o vão dos dentes cerrados, fechou o jornal. Nah perdera a última chance de matar o tempo sem sujar as mãos. Abriu a bolsa, pegou o lápis de olho, desenhou algumas estrelas nas unhas da mão direita. Poucos instantes depois, após apagar o esboço de um coração no dedo anular, Nah adicionou uma lua minguante à estrela solitária do polegar direito. Assim que se virou, notou os olhares de uma garotinha sentada do lado esquerdo do vagão. A garotinha sentava-se do lado da mãe, cujos sentidos oscilavam – ela cochilava indiferente aos avisos de desembarque. A garotinha olhava para Nah, abraçando com força, o que Nah imaginava ser um pingüim de pelúcia azul. A mãe da garotinha nos breves instantes de consciência retocava a maquiagem com a ajuda da janela, retirava o excesso de batom vermelho com um lenço de papel, ajustava a saia curta, justa e vermelha e calçava parcialmente os sapatos de salto alto. Para Nah existia algum tipo de elegância marginal nos modos da mulher; uma vulgaridade sublimada pela graça dos movimentos. Os olhos fundos denunciavam o descaso da mulher com o sono. Nah guardou o lápis de olho, pegou uma barra de cereais e, depois de constatar que o homem de meia-idade já guardara o jornal numa pasta de couro preta, ofereceu timidamente a barra para a garotinha. A garotinha abaixou a cabeça, moveu-a de um lado para o outro, rejeitando a oferta. Nah insistiu gesticulando; esforçava-se para que sua mímica semi-analfabeta fosse compreendida pela criança de 09 anos de idade. A garotinha riu ao ver os gestos tresloucados de Nah; colocou a mão direita nas costas do pingüim de pelúcia, fez alguns movimentos, doravante mexeu o bico dele, revelando um boneco ventríloquo, que até então ocultava. Depois cochichou alguma coisa no ouvido do boneco, abaixou a cabeça e falou, baixinho, com movimentos minuciosamente minúsculos da boca: - Mamãe me disse para não falar com estranhos. Nah pensou, titubeou, pegou o lápis de olho de volta, riscou um balão de diálogo num lenço de papel branco com a frase: “Entendo... Mas e seu amigo?”. Não fala com estranhos também?”. Em seguida pegou outro lenço, escreveu entre parênteses” Ou é tímido demais?”, em letras garrafais. Nah e a garotinha riram. Nah trocara a ordem das mensagens acidentalmente. A garotinha respondeu usando o pingüim como porta-voz: - Falo, mas hoje tô doente... Preciso descansar – fazendo uma expressão triste com o rosto do boneco. A cara dele contrastava com a voz fanha e engraçada que a garotinha usava. Nah então percebeu que havia um termômetro colado com um band-aid, bem debaixo de uma das asas do pingüim. Conteve-se para não rir. Ponderou um instante:” não é nada fácil a vida dessas criaturas nos trópicos “. O dia estava muito quente mais uma vez, no entanto Nah ainda parecia incrédula: recusava-se a acreditar que pingüins de pelúcia sofriam de insolação. Talvez alguns dias numa geladeira confortável fariam bem, divagava. De repente, após uma nova mensagem de desembarque, a mãe da garotinha acordou assustada. Refeita do susto, um devaneio ruim, colocou a mão no rosto da garotinha, alisou-o por um instante e a abraçou com força, amassando o bico do pingüim de pelúcia e amarrotando o vestido rosa da filha. Levantou-se, pegou a filha pela mão e saíram pela porta recém-aberta. A garotinha despediu-se de Nah sorrindo, exibindo as janelas da casa de cálcio( o pagamento das fadas estava em dia), fazendo movimentos com uma asa e o bico amassado do pingüim.
Enquanto voltávamos ao percurso habitual, trombamos com a tia dele por acaso(mundo congestionado!); uma senhora simpatisíssima diga-se de passagem, que nos ofereceu comida(segundo ela uma sopa deliciosa nos aguardava se aceitássemos) - recusamos, ela insistiu, pediu que comêssemos um lanche, tomássemos uma vitamina pelo menos, mas não mudamos de idéia. Estávamos cansados, abatidos, o entusiasmo perdera-se em alguma esquina lá atrás. Visitamos um cinema que a simpática tia de meu comparsa indicou, mas a próxima sessão demoraria umas duas horas e não tínhamos disposição pra uma sequer. Nos despedimos da simpática senhora que mais parecia uma avó saída de algum conto infantil, daquelas que fazem bolinhos de chuva e contam histórias pros netos, tamanha a afabilidade. Caminhamos cerca de meia-hora, até lembrarmos da recomendação dada pela simpática senhora(acredite, mesmo que eu soubesse o nome dela, ele não a descreveria melhor): ela nos mostrou um ponto e o horário onde poderíamos pegar um ônibus que nos levaria direto pra casa, sem rodeios e baldeações. Não conversamos muito na volta, estávamos imersos em nossos próprios mundos particulares; ouvíamos música, de vez em quando ríamos sozinhos, nada digno de mais um parágrafo . Meu comparsa sugeriu que eu fosse a casa dele ainda, tomar alguma coisa, esticar a conversa, mas eu só pensava em esticar minhas pernas - recusei a oferta, nos despedimos e sabíamos que cada um trazia na mochila mais do que embalagens de barras de cereais e uma garrafa de água vazia.
Desistimos e voltamos a caminhar. Se ao menos tivéssemos lancheiras, teríamos alguns sanduíches de mortadela(atum em dias melhores) Ríamos da idéia de uma excursão escolar frustrada - o ânimo definhava, mas restava-nos uma fatia de humor. Vimos um cemitério enorme, parecia uma cidadezinha de mortos e, embora pareça bizarro, o lugar era muito bonito. Tumbas, câmaras mortuárias, criptas, lápides, jazigos, capelinhas e todo tipo de arquitetura gótica e renascentista, às vezes com inscrições em latim(a língua dos mortos), dividiam espaço com ipês amarelos e roxos. Me perguntava como seria sugestivo o nome das localidades ali: rua das Lamentações, esquina da Redenção, alameda dos Anjos, bairro dos apóstolos e uma infinidade de bobagens iam-vinham-iam à minha cabeça. O que nos impressionava era o tamanho do cemitério - nos perdíamos na vastidão dele. Entramos pelo portão dos fundos, suponho que não há ou havia um vigia. A tranqüilidade que senti naquele lugar é indescritível. Olhávamos, fotográfavamos, imaginei se as fotos revelariam alguma manifestação espiritual/ ectoplásmica, contudo percebi que isso não passava de um roteiro de filme B tailandês - até arrisquei algumas notas no violão, depois de olhar a minha volta e perguntar com os olhos pro meu amigo se "eles se importariam". Vi gatos, muitos deles, formavam um tipo de gangue e nos observavam curiosos a distância. Fotografei alguns, não era fácil, eles fugiam quando me aproximava - imagino que não gostem de paparazzos. Havia algumas folhas secas(pedaços de Outono)em cima de alguns túmulos; imagens de santos e santas, esculturas, o tradicional Cristo sôfrego, flores de todas as cores, cheiros e preços, retratos antigos em sépia ou preto e branco que mostravam homens de bigode, terno e gravata, mulheres com penteados de época, algumas bonitas, outras nem tanto; algumas, raras de fato, exibiam a natureza artística impressa no rosto(talvez fossem cantoras de rádio, atrizes de tv e cinema, poetisas, pintoras, não sei) Muitas morreram jovens, na aurora da vida, o epitáfio me dizia. Havia imigrantes europeus, japoneses, cogitei a hipótese de um Yakuza estar enterrado no meio deles. Procurei famílias com meu sobrenome, não achei nenhuma, quem sabe com um pouco mais de esforço. Quando nos preparávamos pra voltar para casa, meu comparsa avistou uma jovem muito bonita: ela tinha a pele alva, usava óculos escuros, uma blusa preta e calça preta, um coturno preto e uma bolsa cinza coala. Meu comparsa se apaixonou instantaneamente pela gótica - deve ser a primavera, ele fica muito suscetível nessa época do ano. Ele falou bastante dela enquanto voltávamos, fez planos, ensaiou encontros imaginários, escolheu o nome dos filhos que teriam juntos, etc.
Prosseguimos a viagem a pé e a passos. Ele me mostrou um mapa que imprimira um dia antes, tive que confiar nos dotes ocultos de navegador dele, não tinha opção, tampouco fazia alguma idéia de onde e quando chegaríamos. Percorremos um bairro nobre de São Paulo, uma parte da cidade que deu certo: construções bonitas, ruas arborizadas, algumas com árvores de caules imensos; pareciam sequóias africanas, calçadas limpas, um lugarzinho bem agradável de se ver. Encontramos um senhor, um verdadeiro trovador, que bradava com um jornal em mãos que a polícia entrara em greve, enquanto nos encarava com um semblante etílico que tantas vezes presenciáramos na vida. Por incrível que pareça não nos perdemos e menos de uma hora depois avistamos o teatro. Esperamos num banco típico de praça a abertura do guichê. Enquanto degustávamos as barras de cereais, meu comparsa recebeu o telefonema de outro comparsa, o que o convidara em primeira instância - ele estava a caminho e parecia perdido. Meu comparsa fez o que pode pra orientá-lo, eu resolvi comprar água. Não foi fácil, não havia uma única padaria ou boteco nas redondezas, eu só avistava restaurantes luxuosos e me perguntava se vendiam garrafas de água nesses lugares. Depois de uns vinte minutos de caminhada achei um oásis, digo boteco. Bairros burgueses são inviáveis pra mim, imaginei. Quando o guichê abriu veio a surpresa: a peça seria apresentada estritamente pra alunos de uma universidade local. Meu amigo protestava em silêncio, assim que o silêncio lhe pareceu barulhento, me confessou que não xingara a moça do guichê porque ela era muito educada e bonita, sobretudo do lado dela havia um segurança, um desses leões de chácara que o desencorajava com os olhos e o intimidava com os músculos. Voltamos rindo de nossa própria desgraça, ironizando, satirizando nossa falta de sorte. Hipotetizamos a possibilidade de tudo não ter passado de uma pegadinha; talvez estivéssemos em algum tipo de reality show, no entanto por mais que eu procurasse não encontrava sinais das câmeras escondidas - era real, e não era legal. Nosso comparsa perdido ligou outra vez, disse que chegara lá, meu amigo lhe contou o ocorrido e pediu que ele tentasse persuadir uma amiga que era estudante da universidade a ir até lá com dois amigos e conseguir os ingressos. Mas não dava mais tempo, ele não ligava de volta, esperávamos sentados e cansados num ponto de ônibus. Eu tocava uma música no violão recém-adquirido por meu comparsa, pessoas passavam, olhavam, algumas admiravam, outras riam, esqueciam e se iam.
Começamos nossa longa caminhada subindo uma avenida movimentada; carros, faróis, prédios e de vez em quando gente de verdade. Eu carregava minha mochila no toráx e abdome, parecia um marsupial e meu comparsa, biólogo formado, não pode deixar de rir bastante com meu comentário - emendou, no tom sarcástico e irônico habitual que "marsupial no Brasil é gambá". Ele flertava através de olhares com as moças bonitas que passavam(ou passeavam) em ônibus, admirava solitariamente algumas sílfides desavisadas que cruzavam nosso caminho - eu via tudo e ria comigo mesmo. Ele brincava dizendo que se não éramos irmãos em outra vida, éramos farinha do mesmo saco - só isso explicaria nossa sincronia nos pensamentos. Muitas vezes nem falamos nada, um apenas olha pro outro e sabe, é como a telepatia que você não encontra nos filmes de ficção. Meu comparsa trazia na mochila barras de cereais com chocolate prum inverno inteiro, placas de rede que eu havia lhe entregado antes por medo de esquecer depois, baquetas e esperanças. Como havíamos combinado, assim que chegamos numa rua famosa por ser um antro musical(há lojas de instrumentos nas quatro direções), fomos ver um violão pelo qual meu comparsa se apaixonara menos de uma semana atrás. Ele não toca o instrumento; faz conservatório de bateria há menos de três meses, tem um baixo mas não sabe tocá-lo também, no entanto é um colecionador de instrumentos dedicado - ele tenciona aprender a tocar todos eles um dia. Ele diz que toca berrante, mas não sei se é verdade nem sei se existe uma escala musical pra isso. Testei o violão durante alguns minutos, dei um veredicto positivo; gostei do instrumento - geralmente sou um cliente chato, testo muitos instrumentos e não levo nenhum e dessa vez não seria diferente, mas meu comparsa estava apaixonado pelo violão e o amor fez com que ele estragasse meus planos - fechou negócio com o vendedor poucos minutos depois. Ele parecia uma criança com um brinquedo novo.
"Eu continuo vivo", não, não é isso, antes que alguém pense o contrário direi que não trata-se do refrão daquela canção bacana do Pearl Jam - essa expressão resume a sensação que tive ao deixar pra trás um dos maiores cemitérios do estado. Sai de casa pra ir ao teatro, acabei indo a um (o)cemitério; todavia toda história tem um começo e a minha não começou assim. Segunda-feira recebi o convite de um amigo e comparsa de longa data - ele disse que haveria uma apresentação gratuita do apresentador do programa "Provocações" da Cultura, num teatro que fica na capital do estado. Achei o convite meio intelectualóide e repentino, afinal eu vi o programa poucas vezes e, embora atestasse a qualidade não imaginava que o fato fosse entrar pra minha retrospectiva particular do ano. Aceitei, sem muito entusiasmo e laconicamente como de costume. Acordei cedo, encontrei meu comparsa no ônibus, conversamos sobre livros, filmes, música, filosofamos sobre tudo isso e mais um pouco, rimos de coisas bobas como bobos; inclusive, ouvi durante a viagem de ônibus a máxima do dia:"O que sua imaginação permitir e a física adequar" - meu comparsa, um canalha muito espirituoso por sinal, divagava sobre uma fantasia sexual, uma espécie de orgia experimental usando o corredor que dá acesso a catraca, mulheres nuas com as mãos atadas as pequenas alças pretas, similares as de mochilas, que ficavam presas numa barra de ferro superior do ônibus. Eu ri muito. O cara é um pervertido declarado! Eu não sabia ainda, mas aquele dia seria repleto de pérolas negras. Antes de descer do ônibus, vi que meu comparsa olhava com olhos de lobo pra baterista da antiga banda da minha irmã. Ele não sabia, quando contei o cara quis me matar - teimava que eu devia ter lhe apresentado; logo eu, que sou um péssimo relações públicas.
Anna descobriu isso numa manhã. Era sexta-feira, 14 de junho de 1979. Mãos grandes e ásperas pesavam sobre seus ombros. Fazia um frio insuportável. Chovera muito algumas horas atrás.”Quando as pessoas morrem um anjo desce do céu e as leva para lá, Anna”, seu pai dizia-lhe com uma expressão apática e sombria. E ao ser perguntado por que sua esposa não acordava, repetia:”Ela está dormindo agora querida “– “foi para um lugar muito, muito distante daqui” – “não se preocupe, o papai está aqui“– “está tudo bem” – em seguida acariciava os cabelos e a testa da garotinha carinhosamente. Anna gritava, chorava, mas a mãe não acordava. Homens vestidos de preto revolviam a terra úmida com pás, jogavam-na sobre a cova recém-aberta. Mentiram para ela. Ela sabia. Sempre mentiam. Nada fazia sentido para Anna agora. Nem aquela coisinha chamada Vida. Pessoas morriam. A Vida era uma garotinha frágil no final das contas. As últimas palavras da mãe ressoavam como um estampido na sua cabeça:
- Não se preocupe querida...É apenas água salgada – dizia a mãe de Anna enquanto enxugava os olhos úmidos num lenço branco. Anna olhou para ela e indagou:
- Ué...Cadê o mar mamãe?
- Está aqui querida – a mãe de Anna colocou o dedo fura-bolos direito na íris esquerda azulada da garotinha, fez um movimento leve para baixo, tocou a pálpebra retirando um cisco e sussurrou no seu ouvido:
- Aqui fica a praia. Querida quero que me prometa uma coisa: você vai construir castelos de areia, está bem? – soluçou, sorriu sem graça e abraçou-lhe fortemente. Anna sentia um aperto – e o abraço não era o único responsável. Anna não esqueceria.
Anna pegou o último chiclete que sobrara na bolsa. Não podia desperdiçá-lo. Usaria-o com cautela. Dividiu-o em duas metades ligeiramente iguais, levou uma delas à boca e mascou lentamente, deixando que a goma tingisse sua língua de violeta. O gosto doce aliviava a tensão. A intensidade do efeito era irregular. Podia durar horas ou apenas alguns minutos. Anna não estava com sorte. Levantou-se e voltou a caminhar. O pátio do colégio lhe esperava uns 120 metros adiante. Os passos desritmados dela produziam um som desagradável, cacofônico e irritante. A sola do coturno estava seriamente comprometida. As pernas cansadas, formigando, imploravam por um descanso. Anna carregava o peso das pequenas coisas – coisinhas que significavam muito para ela. Passou por uma amarelinha tomando cuidado para não pisar no inferno. Os ecos dos passos desapareciam pouco a pouco, juntando-se às escadarias e um corredor amplo que levaria-lhe ao seu destino. Estava muito perto agora. Parou em frente um muro que continha frases subversivas escritas com spray vermelho barato, desenhos, marcas e corações de casais apaixonados. Tinha que estar ali. Anna não lembrava direito o que procurava com tanto afinco. Procurava qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Abaixou a cabeça, fechou os olhos, beijou o pingente do colar, lembrou-se da mãe. Ela lhe dera o colar assim que Anna completou sete anos de idade. Dizia que ele tinha uma história:”Tudo tem uma história Anna” – “não se esqueça” – não cansava-se de afirmar. Esta era antiga. Anna o carregava para onde quer que fosse. O pingente do colar tinha a forma de uma bola de gude. No interior dele havia uma substância, um líquido viscoso que conservava uma mariposa cinzenta morta. A aparência bizarra do colar levantava suspeitas sobre sua procedência. Anna gostava de mariposas – mariposas são legais, dizia. O fato dela não estar viva não lhe incomodava. Embora mariposas e insetos em geral possuíssem um defeito imperdoável. Geralmente tais criaturas morriam queimadas de maneira estúpida em alguma fogueira. Nasciam, viviam, morriam de maneira estúpida. Não eram muito diferentes dos humanos, Anna pensava. A Vida era cheia de encanto, mariposas e insetos – não na mesma proporção decerto. Mariposas simbolizavam o fim inevitável das coisas.
Acorda cedo, levanta, lava o rosto, os papéis na gaveta não mentem: aconteceu mesmo. É estranho, ele imaginou que as coisas voltariam ao normal quando acordasse. Normal...Normais...Agora vê o quanto se acostumou aos padrões. Era fácil, só precisava repeti-los continuamente, dia-a-dia, de maneira mecânica, sem sentir, sem pensar, sem vida. Sente falta da rotina, é irônico, mas nela encontrava um porto seguro. Se acomodou, se acostumou, o doparam, o domesticaram, depois o dispensaram - trocou seu quadrado, seu círculo, por alguma forma e fórmula geométrica desconhecida. Ele pega o ônibus, nota um rosto familiar dentre tantos estranhos; se cumprimentam, dividem lástimas, boa fé, uma integridade repartida ao meio - ele até ignora o português vulgar e vencido de seu ilustre companheiro a prazo. Aguarda sentado um exame, uma sentença, que alguém, algo lhe diga que pode voltar pra casa. O médico responsável lhe chama, ele atende, entra numa sala com as paredes brancas repletas de réplicas baratas de quadros famosos - sob a mesa, caído, está um retrato em preto e branco antigo. Ela é jovem, loira, bonita, ele imagina que o sorriso dela talvez seja a única coisa autêntica ali. Os olhos do médico olham pro monitor do computador, enquanto o mesmo lhe faz as mesmas perguntas que são respondidas do mesmo jeito. Ele volta pra casa, espera o almoço e alguma coisa que não esteja no cardápio - lá fora suas crenças morrem de inanição.
Houve uma época em que Ele atravessava o frenesi da avenida mais famosa da cidade Cinza, pra ir ter com a Liberdade noite-dia, fim de semana sim fim de semana não, conferir de perto o lançamento das novidades que vinham de longe; DVD's, mangás, ipod's, raridades, espiar revistas de contrabaixo japonesas em sebos locais(Dó-ré-mi-fá-sol-la-si é assim! Não importa o lugar), transeuntes falando um idioma diferente, indiferentes, tomar suco de goiaba na feira e relutar(mais uma vez) em provar Yakisoba, ver as gueixas solitárias sentadas nas escadarias da estação, ouvindo J-Pop/Rock, Enka, uma em três, seis, nove, doze, dezesseis num walkman made in Taiwan, gatos japoneses de porcelana chinesa que sempre muito amistosos, cumprimentavam todos que se dispunham a olhá-los do outro lado da vitrine)fora( - coisinhas que esquecera, mas que ainda moravam ali(dentro) Mas agora Ele está em casa, "seguro" e trancado - e gripado. Pensava em ir a casa de amigos tocar, fazer música, fugir, mesmo assim, nesse estado deplorável - imagina que é alguma espécie de mártir desvirtuado. Os amigos desistiram, não por causa dele, eles confessaram que agora tinham um pretexto pra se curarem de suas próprias "ressacas". Ele olha da janela, desolado, pra calçada vazia. A Vida passa, Ele fica. Só lhe restou a combinação Coldplay cobertor violão.
O chevrolet vermelho comportava-se bem; apesar dos ruídos em quarta diminuta, o pára-brisas, os faróis, freios e buzina funcionavam perfeitamente. A vela do motor, desgastada, não apagava por pouco, contudo nada que uns ajustes na repimboca da parafuseta não dessem um jeito. O vidro traseiro, apresentava um adesivo, com a seguinte frase em letras pretas: ”Não ando à pé ou de bicicleta, tenho muitos cavalos que marcham”. Filosofia de pára-choques de caminhão sofisticada. Xavier ligou o rádio, sintonizou na FM familiar – tocavam uma canção que lhe agradava. A canção que Yai adorava – que repetia, repetia e repetia tantas vezes. Um teste de fogo para o aparelho de som velho e cansado. Xavier pensava nela. Ela enjoara outra vez. Inventava: balançou delicadamente o chaveiro com a inicial Y, abriu o porta-luva, retirou um par de sapatinhos de crochê, pendurou-os no espelho do passageiro, aumentou o volume do rádio, acelerou e começou a cantar. Xavier amava Yai. Ela lembrava-o de que era feliz. 20 minutos dali, Yai preocupava-se. A menstruação estava atrasada. E se estivesse grávida? Não estava preparada, pensou. Alisou o ventre rapidamente. Prosseguiu. Se alguém estivesse em casa atenderia. De repente, passou pela sua cabeça as dúvidas mais impulsivas e impossíveis possíveis: "o que Xavier acharia? Ele ainda gostaria de mim se eu engordasse muito? E todo aquele leite de soja transgênica que bebi de manhã? Afetarão o desenvolvimento do bebê? AI MEU DEUS VOU EXPLODIR!". Yai respirou fundo, pegou o chaveiro com a inicial X; empurrou a maçaneta da porta, deteve-se um instante: tinha a impressão de que ouvira algo. Sorriu, acariciou a inicial X e entrou no apartamento. Ficaria bem. Tinha Xavier. Xavier e Yai entrariam numa nova fase agora. Uma fase estranha e complicada. Precisariam ser mais responsáveis do que nunca, afinal, não eram mais alunos do primeiro grau. X e Y foram feitos um para o outro, embora um igual (=) insista em se meter entre os 2. A matemática é uma ciência exata. E o amor...O amor às vezes dá certo.
Foi no mês de todos os santos, domingo, duranteumfestivalemquecrianças fantasiadas trocavam travessurasporgostosuras. Uma carruagem desgovernada atingiu umposte; libertando os cavalosque perderam os estribos e as estribeiras. Saíram emdisparada, atropelando o velhoSam Hain que passeava distraídopelacalçada. O laudo do legista apontou ”atropelamento poreqüinos ordinariamente adestrados “ como a causa mortis. Xavier foi ao velóriosozinho. Yai estava indisposta. Xavier demorou maistempo do que o habitualpara arrumar-se. O nó da gravata cansava-lhe. Se havia algumsegredo, algoque a maioria dos homens desconhecia e, meiadúzia de gatospingados privilegiados sabiam, eracomo se dar o nó numa malditagravata! – pensava Xavier. Parentes, amigos, funcionários e puxa-sacos, rodeavam o caixãoaberto – onde o defuntodevidamenteapresentável, exibia a testaproeminente, os cabelosralos e grisalhos, e algunshematomas no queixoque o pó de arroznão conseguira apagar. A viúva soluçava alto, amparada peloombro do filhoúnico do casal. No ínterim dos soluços, balbuciava impropérios dirigidos aos estranhos, pobresdiabos, que aproveitavam-se de suador e desgraçaparasaciar a fome; embriagar-se comuísquelegítimo e importado. Xavier hesitava em cumprimentar-lhe. Apesar de tercuidadopessoalmente do envio de coroas e outrospormenores do velório, não sentia-se à vontadecom a situação. Xavier aproximou-se lentamente da viúva, ensaiando uma espontaneidade ensaiada, mas a voz da mãe de Dominique cancelou suapeça. Ela dizia que a novena começaria e pedia aos parentes e amigosmaispróximos, que se reunissem nosfundos da capela. Xavier seguiu, cismado, as senhoras de véunegro, terços e rosáriospelocorredorestreito e molhadoque desaguava perto de umaltar. O filho do Sr. Sam Hain, o advogado e o barbeiro, eram os únicoshomensalém dele ali. É costumeque as mulheres recitem ave-mariasenquanto os homens recitam o pai-nosso. Xavier não estava acostumado. Esqueceram de lheavisar. Suava frio, os olharesreprovadores vinham de todas as direções(“ORASBOLAS, QUECULPA TENHO?! – NUNCA FUI COROINHA, PÔ!”) Xavier gritava silenciosamente. Pálido, olhou para o Cristo crucificado. Procurava a saída de emergência. Uma senhorasisuda, cheia dos ”blábláblás e nhem nhem nhens”, começou a tossircompulsivamente. Xavier aproveitou-se da distração ocasionada pelacrisepulmonar dela, parafurtivamente, num zás-trás, sair dali. Xavier viu o caixãodisperso no meio da massaqueoutrora se juntava ali, aproximou-se, encostou na borda. Fitou o defunto, fixando-se no rosto. A face áustera revelava umhomemquenão conhecia sutilezas. Não tolerava entretantos, poréns e todavias. Dominique Sam Hain foraassimtodavida. Xavier lembrou-se dos tapinhas nas costas, as pilhériasmatinais, as confissões extra-conjugais e todas as coisasque o rei da indústria da morte, o papa dos defuntos, deixara paratrás e queagoraele trataria de devolver. Xavier afrouxou o nó da gravata. Fechou os olhosporumminuto. Abriu-os, mexeu nosbolsos da calça e o terno; encontrou uma moeda. Não bastava para a corrida do barqueiro. As coisas andavam difíceis no inferno, imaginava. Arrancou umbotão do terno de linho emprestado. Talvez bastasse para uma corridaaté o purgatório, Xavier torcia - não sabia rezar. Colocou o botãosobre o olhoesquerdo do defunto. Porfim, pôs a moedasobre o olhodireito. Foi emborasemconversarcomninguém.
Yai sónão superava a vizinhaque acordava de manhãzinha parapedircafé e açúcar emprestado, comumsorriso no rostotãoverdadeiroquanto uma Mona Lisa de Picasso. A estranha chamava-se Joana e tinha uma aversãoinexplicável as consoantes: oiii, ééé, iiii, oooo, uuum compunham a maiorparte do seuvocabuláriosocial. Vestia umrobecurto, vermelho e insinuante, carregava uma xícara e umjornal nas mãos. Trocava de namoradotodasemana – Yai contara. Quando ia para o trabalho, Yai voltava a esbarrarcomela no corredor. Xavier a evitava. Porsorte(claro! Poisnão há melhordefinição obviamente) o elevador enguiçava durante a semanainteira. Uma placa indicava:”Elevador em manutenção"– Xavier descia pelas escadassemolharparatrás - eramelhorcorrer dos riscos. Yai apressada, esbarrava nos outros moradores, desculpava-se comumperdão, despedia-se abruptamente e voltava a apostarcorridacom Chronos. Estava no calcanhar dele outravez. Esgotara seuscréditos no últimomês. Precisava apressar-se e o Tempoeraumtrapaceiro. Yai trabalhava numa clínicamédica, na seção de radiologia há 9 meses. Era praticamente umserviçovoluntário, jáque o saláriomal cobria suasdespesas, no entantofora a melhoropçãoque encontrara. Nãoforadifícilescolher, recém-formada, nãotinha muitas opções. Ali, 6 meses atrás, conhecera Xavier. A princípio Yai dissera para Xavier quecasoele estivesse à procura de umcoração, estava no lugar errado – a seção de cardiologia ficava do outrolado, umpoucomaispara a esquerda. Xavier usou cantadasbregas, presentes e pedantismopara convencê-la do que sentia. Yai não achara-o atraente, ria e, como estava sozinha e o rapazera ao menos engraçadinho, resolveu continuar a história. Uma históriarepleta de vírgulas, parênteses, reticências e travessões. Elaainda guardava na gaveta da cômoda, no meio de calcinhas, envelopes, cartas e cartões-postais, a chapaque continha o raio-x do primeirobeijo deles.
Hoje Xavier cumpriria a promessa. Fora promovido. Ele acreditava que Yai precisava de umanimal de estimação também – convencera-se disso. Todavia, não havia espaçoparamaisumSão Bernardo. Chico ficaria solteiro. Xavier resolveu entãopedirconselhos ao atendente do pet shop, quesolícito, sugeriu-lhe uma iguana. Xavier olhou o réptil da cabeça a cauda, coçou a cabeça:”friodemais!” - emseguida perguntou ao atendente se não tinham nadamenosexótico. O atendenteentão sugeriu-lhe umhamster. Ummamífero tradicional e caseiro. Xavier olhou para as gaiolas, viu umhamster devorando sementes de girassol – do lado, outro, reconchudo, suava na esteira. Aquilo pareceu-lhe engraçado. Faltava alguma coisaainda - nãoeraeste. O atendente acendeu umcigarro, tinhaumchapéu de explorador e tatuagens espalhadas pelocorpointeiro. A girafaazul no bícepsesquerdo destacava-se. Xavier sempre teve sériosproblemascomescolhas. Eleera o X da questão. Passava mais de uma hora na locadora, alugava os filmes errados e voltava paracasa. Encontrava Yai cochilando no sofá, Chico esparramado no carpete, a televisãofora do ar e umbalde de pipocasfrias. Xavier acordava Yai fazendo cócegas na planta de seuspés. Cansada dos constantesatrasos, Yai resolveu ensiná-lo a portar-se diante a escolha de umfilme: bastava que escolhesse um romântico, bonitinho, comumpiano afinado e chuvaqueela daria-se porsatisfeita. Dessa vez Xavier não contaria comsuaajuda. Precisava escolhersozinho(“CÉUS, COMO FARIA ISSO?!) –se até as cores de seuspijamas foram escolhidas porela!?. Quem sabe uma arara, pensou. Yai teria alguémparaalfabetizar, conversar e daralpistetodos os dias – alguémque faria-lhe se sentirimportanteincondicionalmente. Xavier acompanhou o atendenteaté o viveiro, masassimque adentrou o lugar, ouviu consternado araras vermelhas, azuis e amarelas saudarem o atendentecompalavrõesemuníssono – ele parecia bastantepopular. Xavier acabou deixando o pet shop com as mãos vazias e a promessa de que entregariam o aquário e sua moradora, uma estrela-do-mar, no fim de semana. Yai adorou a surpresa. Ficou aindamaisfelizquando descobriu o motivo. Disse que a estrela-do-mar se chamaria Lis. Uma estrelacomnome de flor.Yai não dispensava flores. Já Xavier gostava bastante dos cactosque preservava num vaso de areia; feitocomumpote de iogurte desidratado. Yai não sabia o quedizerparaagradecer. Xavier disse que se elanão dissesse nada, arrancaria as palavras de suaboca à força: tomou-a nosbraços e beijou-lhe e intensamente. Chico olhou para a cena e a estrela enciumado. Nestes momentos, Xavier esquecia o quão incomodava-lhe as abreviaçõesque Yai usava: pra, tá, pra, tô, pra, quê, mor, cê etc.
Yai adorava espuma de cafécom chantily, caramelos, all-star preto de canolongo, cheiro de naftalina, umvestidomarinhocom bolinhas brancas e o broche de São Longuinho, achados num brechó perdido, e dançartangocom a tábua de passarroupas. Xavier preferia cães e o programa de perguntas e respostasque passava sábado à noite. Xavier e Yai dividiam o apartamentominúsculocomumcãoSão Bernardo chamado Francisco. Às vezes, ”Chico" (como Xavier apelidara-o carinhosamente), tinhasurtos de claustrofobia. Umpacote de jujubas, algunsafagos e umpasseio pelas redondezas faziam parte da terapia. Xavier não sofria de claustrofobia, entretanto, escadas rolantes e elevadores provocavam-lhe calafrios. Antes de mudar-se definitivamente, fez várias perguntas a respeito da segurança dos elevadores do prédio. O síndico respondeu com ”claros, pois nãos e obviamentes”. Neste dia, à noite, logoapós a sobremesa, Xavier teve pesadeloshorríveis. Sonhou queratos, inquilinosindesejáveis do 209, aglomeravam-se na forma de uma tesoura; roíam e rompiam o cabo do elevador. “Bom, este foi maisoriginal do queser enterrado vivo, não?!” – rianervoso, enquanto contava para Yai o ocorrido no café da manhã. Xavier realmente detestava elevadores – e balascomgosto de xarope. Yai não gostava de cães. Tolerava-os. Chico costumava confundir os abajurescompostes – mijava neles, molhando o carpete(odiava os persas!) transformando o queantesera uma sala num banheirounderground. Yai ficava cricriquando flagrava-o mordendo, mastigando, fazendo cracks e crecks com os duendes, fadas e bruxas de ceraque ficavam na sala, emcima da mesinha de centro. Ela tolerava as peripécias dele porque sabia que o amor exigia concessões, impunha condições, tinhaseupreço. O dela tinhapreço, nome e pêlos. Xavier prometera-lhe queassimque pudesse, compraria umosso de borracha para Chico num pet shop.