sábado, 14 de novembro de 2009

AZEDU-ME

Chovera monotorrencialmente. A noite recolhia as nuvens desgarradas que restavam no céu. Um sopro de prosa ajudaria a desanuviá-lo: Ela. Branca, bela, loura, linda, moça, louca - ela assim-assaz, chupando limão com sal e lhe dizendo coisas doces. Mentiras? Talvez...Provavelmente. Não importava. Aquilo lhe fazia tão bem. Ele tinha uma vontade contrita, de não-ter-sido, de não-ter-estado. Recaída. Precisava urgentemente de uma injeção de ânimo. A única farmácia ficava longe. Já estava fechada. Perdera, perderam-se. Uma doideira desatinada assomava. Ele estacou, ofegou, virou-se, foi embora a passo firme e largo, desditoso e distante, engolindo as três palavras que o orgulho, medo, o inibira impedira de devolver. A consciência calava: silêncio era coisa mais prudente e sugestiva.

domingo, 8 de novembro de 2009

STANDBY-OFF

Amuado. Amofinado. Amargo. Falta-me verbo; sobram-me adjetivos.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

SOBRE ANNA: Ocaso.

Agora eram 5:49 da tarde. Estava quase na hora do programa predileto de Anna. Anna assistia seriados e desenhos animados antigos. Assistira tantas vezes que não importava quanto tempo ficasse sem vê-los, sempre teria a nítida sensação de déjà vu. Ela divertia-se imitando a fala e trejeitos de suas personagens prediletas na frente do espelho. Havia um mundo colorido, onde as coisas davam certo e tudo acabava bem, que custava pouco, muito pouco – a felicidade instântanea estava ao alcance de quase todos. Aquilo não lhe satisfazia, mas lhe entretia, fazia com que os pensamentos ruins fossem embora. Mas apesar dos esforços dela, eles logo voltavam para casa: conheciam direitinho o caminho. Anna acreditava que a fumaça do cigarro seria capaz de mantê-los afastados. Ela cogitava roer as unhas, porém o cheiro do esmalte preto, ainda fresco, virava-lhe o estômago. Experimentara o gosto da Nicotina pela primeira vez aos 14 anos, atrás do muro do colégio, diante o olhar incrédulo de uma Solitude anêmica e silenciosa. Engasgou, tossiu, pigarreou e assustada deixou o cigarro cair das mãos - apagou-o com a ponta dos pés e guardou o isqueiro Bic amarelo na mochila. Trocou os insetos que guardava em vidros de conserva pelas cinzas acumuladas no cinzeiro de balshita. Colou uma etiqueta no vidro com a inscrição ”As Cinzas de Anna”, fazendo uma alusão óbvia ao título de um filme que assistira entediada na sala de vídeo do colégio. Anna encontrara o cinzeiro numa visita escolar que fizera a um museu. Ele parecia tão sozinho. Anna notou que não haviam mais pinheiros ali. Sentia que algo bucólico se perdera. Descobria-se descoberta. Onde as crianças brincavam de esconde-esconde agora? Risadas altas e sorrisos metálicos inundavam seus pensamentos. Aquilo não duraria muito.

domingo, 6 de setembro de 2009

LÚDICO

Quando estou na biblioteca da escola onde trabalho, sinto-me como uma criança que chegou a Disneylândia pela primeira vez - tudo isso sem ter que passar pelo constrangimento de ser fotografado no colo de um cara fantasiado de Mickey ou Pateta.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

MADRUGANDO

Ele e dois amigos foram a capital ver a virada cultural. Sabiam que teriam que se virar para manter-se acordados, já que dormir naquela multidão, mesmo em turnos alternados de vigília, seria praticamente impossível. Eles estavam acompanhados de uma mulher. Ele já a conhecia de vista e conversara com ela uma vez sobre o filme Peixe Grande. Nada especial. O grupo viu shows, contou histórias, bebeu vinho barato, contou mais histórias, até que um membro sugeriu que fossem comer alguma coisa. Eles aproveitaram-se do fato de que ela sentira vontade de ir ao banheiro, unindo o útil ao necessário. Visto que não tinham muitas escolhas, adentraram um boteco fedorento qualquer; um desses recintos esquecidos pela vigilância sanitária. Era engraçado ver a reação, a expressão de nojo que tomara conta dela assim que viu o banheiro. Ele imaginou se ela se perguntava "isso é para o uso de seres humanos?". O local parecia algum set de filmes B norte-americanos de terror. As condições eram muito precárias e não havia tranca nas portas. Adivinha quem teve que ficar mais de 15 minutos guardando a porta do banheiro para a donzela apertada?. Ele que mal falava, foi escolhido sem resistência verbal para a tarefa inglória. Ele notou que alguns caras estavam lhe encarando. Também não parava de pensar no que faria se outra mulher aparecesse. Esta podia lhe confundir com um tarado, um pervertido sem-vergonha, sujeito sem moral que faria a alegria de presos numa penitenciária estadual. Ele estava bastante constrangido. Quando saiu do lugar(ele saiu um pouco antes do restante do pessoal), uma garota perdida de Campinas o abordou pedindo informações. Provavelmente a garota o confundira com um guarda de trânsito. O boné preto e a posição dele(que encontrava-se perto do farol)pareciam mais que suficientes para alguém com imaginação e problemas.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

P.S:

Pensava no que dizer, por onde começar, queria palavras bonitas, engraçadas, mas nada que parecesse papo de arquiteto(já notou que pra eles tudo deve ser feito sob medida?); queria algo espontâneo; me peguei pensando no significado de espontaneidade: ela não é absoluta. Talvez a capacidade de improviso é que torne alguém mais ou menos espontâneo - existe uma certa precognição que molda, às vezes refina, censura, enfim transforma o que pensamos em palavras - essa precognição em escala maior é a clarividência genuína, diria. Faz uns dez minutos que digito essas palavras, penso nelas há uma hora mais ou menos, é, já sei, não sou um cara espontâneo. Desculpa, temo não ter outra oportunidade tão cedo...Estou atrasado, mas não me diga que é tarde; isso parece muito tempo em qualquer fuso horário. Eu precisava fazer alguma coisa a respeito.

terça-feira, 28 de julho de 2009

A.P

Durante a viagem longa e cansativa que fazia para ir as aulas do meu curso, no segundo ônibus que pegava, certa vez vi uma cena que arrancou-me dos braços engessados da rotina. No coletivo havia uma senhora de fogo, pileque, embriagada, completamente bêbada se os adjetivos anteriores deixaram dúvidas. Ela passou metade do percurso importunando a moça que sentava-se do seu lado; visto que cantava muito mal versos desconexos de canções FM. A outra metade gastou mexendo com o cobrador, paquerando-o e o aborrecendo sem nenhum sinal de constrangimento. Ele podia mandá-la para o inferno, mas no estado que ela estava, duvido que chegaria(ou encontraria o caminho) até lá. Na volta da viagem, enquanto caminhava na calçada, trombei com um bêbado pedinte. Parece que atraio esse tipo de gente. Me pergunto se o desodorante que eu usava tinha mais álcool na composição do que o impresso no frasco.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

DILEMMA

Pombos são criaturas melancólicas. Não esqueço o dia em que vi um que parecia tentar suicídio. Ele vagava devagar de um lado para o outro do último andar de um prédio de muitos andares. Olhava para baixo, cabisbaixo desistia, repetia o ritual, ensaiava baixinho um "adeus Mundo cruel", e quando enfim se decidira, apareceu um grupo de pombos que o dissuadiu - suponho que era a "Turma do Deixa Disso". Aquilo não saiu da minha cabeça durante dias( Liberdade e solidão...Onde fica a divisão?)

sábado, 27 de junho de 2009

MUITO LONGE DE BELÉM

Ele sobrevivera a mais um natal, já se dava por satisfeito. Não houve a comoção familiar que tanto temera durante os dias que precederam a data. Exceto pelo fato de ter sido coagido a dar um presente de natal para alguém, não teve maiores contratempos - é, ele teve que presentear a sobrinha graças aos pedidos insistentes e incisivos da avó, uma mulher que fazia horas extras como sua mãe. Como não fazia idéia do que se dava a um bebê do sexo feminino, deixou que sua mãe escolhesse por conta própria - ela escolheu um vestido multicolorido; exibiu com orgulho para todos, anunciando que era um presente especialmente dado pelo filho. Ele teve que encarar os olhares desconfiados( dele?!) e constrangedores à sua volta. "Ela tinha que escolher um vestidinho cheio de cores espalhafatosas?". Se ao menos fosse um pretinho básico...Ahhh o que estava pensando?. Não acreditava em espírito natalino. Mas todas as madrugadas do dia 25, pouco depois do dia 24 colocar o casaco cinza e voltar para casa, os fantasmas de natais passados lhe visitavam.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

MODUS OPERANDI

Quinta-feira, durante uma dessas tempestades de fim de tarde que anunciam a chegada da época mais desagradável do ano(vulgo Verão), caiu um raio perto, muito perto da casa dele. Ele ouviu um estrondo, seu martelo vibrou, estremeceu, e um cheiro forte de fuligem entupiu suas narinas. Ele estava no computador, imagino que vocês tenham idéia do que aconteceu: isso mesmo, o cheiro ruim vinha do computador. O computador travou instantâneamente e atortoado ele teve que desligá-lo, pois o PC não respondia, coisa que já se acostumara depois de um relacionamento longo e conturbado. Assim que o religou e tentou reconectá-lo a internet, seu receio se tornou uma realidade: o discador não funcionava, embora a linha telefônica estivesse ativa e o diagnóstico do modem fosse positivo. Ele já pressentia, sabia, o modem queimara - a autópsia que realizou a posteriori indicava que o modem sofrera uma sobrecarga elétrica. Ele ficou muito preocupado a princípio, por pouco não atravessou a fronteira e entrou nos limites do Desespero, mas sua frieza e racionalidade, toda domesticidade aprendida ao longo dos anos o impediram de seguir em frente. Ele ligou para um amigo perito em informática que lhe devia dinheiro, favores, algumas bebidas e umas doses de consideração. Explicou o problema e ouviu os risos e deboches típicos dele antes de prontificar-se a lhe dar um auxílio técnico. Ficaram mais de meia hora no telefone, enquanto ele desmontava seu PC inteirinho seguindo as recomendações do amigo na linha. Não conseguiu remover o modem danificado, a plaquinha moribunda, por falta de ferramentas apropriadas - mas divertira-se bastante dissecando o Longínquo(esse era o nome do PC - ele gostava de nomear coisas inanimadas) Seu amigo prometeu que viria olhá-lo pessoalmente - disse que viria devidamente acompanhado das ferramentas apropriadas e um modem reserva, que segundo ele talvez estivesse em condições de uso. Se não desse certo, ele estaria encrencado mais uma vez: teria que desembolsar uma grana razoável, se submeter aos preços extorsivos praticados pelas duas únicas lojas de informática da cidade, correr atrás de manutenção especializada, além de prolongar seu recesso virtual temporário. O monitor do PC estava se comportando de uma maneira estranha ultimamente - ele sentia que o monitor parecia meio abatido, quiça desmagnetizado. O mês de Agosto trouxera as bruxas mais cedo.

sábado, 6 de junho de 2009

ITINERANTES

Era cada vez mais emocionante viajar com o serviço de transportes metropolitano paulista - ônibus lotados, figuras incomuns em um meio comum. Sobrava calor, desodorantes vencidos, bêbados, fanfarrões, mulheres obesas, fracassados de todos os tipos e gêneros. Ele procurava coisas singulares nos coletivos. Não era tão fácil. Entretanto, tinha duas oportunidades durante a semana. Na última vez encontrara um sujeito curioso: ele usava um daqueles óculos escuros vendidos a preços módicos em camelôs, trajes de surfista suburbano e o cabelo devidamente desgrenhado com gel sem álcool na fórmula. O cara sentara-se ao seu lado e, enquanto ele olhava para o lado de fora da janela procurando alguma coisa que afastasse o marasmo das pálpebras, o vizinho indesejado parecia hibernar. Logo sentiu algo pesar sobre seu ombro - o cara usava o braço para se apoiar nele! Ele pensou consigo:"se este cara tentar colocar a cabeça no meu ombro darei-lhe uma cotovelada" - reunindo toda força que sua discrição e educação habituais suprimiam. Parece que o estranho ouvira seus pensamentos. Se recompôs em seguida. Ele evitaria se sentar nos assentos de ônibus, mas isto só aumentaria as chances de lhe molestarem sexualmente, imaginava - os ônibus viviam lotados, era mão daqui mão dali, ninguém sabia explicar de onde tantas mãos vinham. Elas desrespeitavam as fronteiras das terras mais baixas, evadiam as estrangeiras, transformavam uma simples viagem numa ferrenha batalha pela integridade sexual.

domingo, 31 de maio de 2009

(IN)SORO

Estava vivo, decerto era a informação preambular primordial, visto que todo o resto que viria não lhe parecia mais que um ornamento, descrições vagas e breves de um estado quase contínuo. Continuava desempregado, contudo não lhe preocupava muito a condição, apesar de ser o alvo das piadas mais esdrúxulas nas rodas de amigos - ironizavam sua postura introspectiva, tecendo comentários jocosos a respeito de uma suposta entrevista. Também lhe escolhiam os cargos e empregos mais inusitados. Quem sabe agente funerário; tinha discrição, logo se tornaria funcionário do mês segundo contavam. Bibliotecário tinha alguns votos, embora a ausência de uma biblioteca municipal, tema levantado por um opositor ferrenho, tenha minado qualquer chance de eleição. Ele aproveitou o ócio forçado para ingressar e concluir um curso numa escola técnica. Precisava agregar alguma coisa ao currículo defasado - levou cerca de três meses e, contrariando seu pessimismo schopenhaueriano, obteve aprovação com a nota máxima. Obviamente o ócio lhe serviu para outras coisas também, não tão úteis de fato: tomava coca-cola com prozac, via filmes B, tocava, esfolava os dedos, estudava pdf's chatíssimos de legislação, artigos, constitucionalidades, estatutos, decretos, todo o blábláblá nas conjugações imperfeitas e mais que imperfeitas para concursos públicos(se inscrevia em todos que apareciam, exceto os de beleza) - e, nas horas vagas, poucas, saía de seu retiro intelectual, dava folga aos neurônios e vagava à deriva pela internet em busca de um pretexto que o mantivesse entretido até o sono chegar. A freqüência em chat's diminuira bastante - quiçá fosse a maturidade chegando. Ele sabia: ela estava atrasada. Falta-lhe a disposição e o comprometimento necessário - não gostava de pensar que tudo aquilo não passava de um passatempo. Ignorando-o o tempo passara.

sábado, 23 de maio de 2009

ANÚNCIOS E CLASSIFICADOS: Parte 2.

Teve mais trabalho do que imaginou, gastou mais sola dos sapatos e saliva do que costumara gastar, mas encontrou a clínica numa rua pouco movimentada, perdida e alheia a todo seu trabalho. Tocou o interfone, o atenderam, logo em seguida dirigiu-se a sala de espera. Ficou ali quase uma hora, lendo sem muita empolgação um exemplar de uma dessas revistas "politizadas". O exame audiométrico apontou uma leve perda auditiva no canal esquerdo, nada grave, decerto consequência de anos a fio ouvindo rock num volume humanamente absurdo. Estranho foi o exame clínico geral. O médico começou fazendo as perguntas de praxe: fuma, bebe, tem alguma doença crônica, usa algum tipo de remédio periodicamente, tem histórico de câncer na família(?), toda esta ladainha que ele já cansara de ouvir. Depois de saciar sua curiosidade programada(e paga), o médicou pediu que o rapaz se sentasse numa maca e aguardasse - mediu o batimento cardíaco do rapaz, pediu que ele inspirasse e respirasse profundamente, até aí nada demais, rotina; os problemas começaram quando o médico pediu que o rapaz levantasse a camiseta e mostrasse o peito e abdômen - o médico observou-os por alguns instantes e soltou a pérola "Tá tudo bem com as bolas e o saco, amigo?" - disse num tom que tentava demonstrar alguma espontaneidade. Foi mal-sucedido. As palavras dele chocaram-se com o Muro das Afetações - aquilo deixou o rapaz surpreso - esperava que o médico usasse uma linguagem técnica e apropriada, algo como testículos e escroto serviria, deixaria a indagação um pouco menos indiscreta. Assentiu monossilabicamente. O médico então pediu que o rapaz fizesse alguns movimentos "estranhos" com a mãos; dobrou os punhos dele, pediu que ele relaxasse(como ele poderia?!) Parecia que ele tentava fazer com que o rapaz"desmunhecasse" - e o rapaz não gostava nada da idéia. Após os exercícios com os braços e punhos(o rapaz queria acreditar que eram simples exercícios físicos, cujo único intuito era verificar o estado de suas articulações), ele pediu que o rapaz virasse de costas, alinhasse os pés, levantou a camiseta dele e pressionou suas costas com as mãos durante uns 15 segundos. Satisfeito, voltou para a mesa onde preencheu os dados na ficha. Pausa na sessão de aeróbica(aquilo parecia tudo, menos uma consulta médica)O rapaz então notou que tocava um hit gay do Simply Red na sala - não via um aparelho de som, imaginou que o som vinha do notebook em cima da mesa. Antes de terminar o médico ainda pediu que ele colocasse as mãos nos pés sem dobrar os joelhos. Podia ser paranóia, mas o rapaz não gostou da cara de satisfação do médico quando ele concluiu o movimento com êxito. Sentiu falta de uma cópia do juramento de Hipócrates. Lá Ética era coisa séria.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

ANÚNCIOS E CLASSIFICADOS: Parte 1.

Compareceu a empresa, atendendo a convocação recebida por telefone. Chegou poucos minutos antes da hora marcada, pegou informações com o zelador e se dirigiu ao departamento de recursos humanos. Notou que havia outro candidato à espera: ele sentava-se numa espécie de carteira escolar, assinalando coisas num conjunto de folhas. Antes que o novato pudesse investigar o que o outro candidato fazia com aqueles papéis, a secretária, uma jovem reconchuda com cara e pinta de professora severa do primário, pediu que o novato lhe entregasse o CPF e a carteira profissional. Ela entregou-lhe um amontoado de folhas, concedeu-lhe um breve tutorial sobre como o novo candidato deveria proceder. A primeira folha continha um teste aritmético; aquilo o assustou: embora não fosse difícil, envolvia números decimais e ele nunca escondera sua aversão por números, especialmente os desta classe. As duas folhas seguintes exigiam que o candidato fornecesse informações sobre experiências profissionais e dados pessoais. A última, em branco, servia para construção de uma redação de no mínimo dez linhas - o tema não poderia ser mais sugestivo, algo do tipo "por que você deseja trabalhar nessa empresa?". Ele se segurou para não rir. "Mais insosso impossível", imaginou. Resolveu os testes aritméticos gastando mais massa cinzenta que o de costume; preencheu os dados necessários e relatou presunçosamente(deu ares de importância vital, subsídios questionáveis, floreios dispensáveis, etc;) sobre suas funções na empresa em que trabalhava anteriormente. No entanto, o mais divertido foi a redação: nunca fora tão cínico e piegas daquele jeito. Usou jargões empresariais obsoletos, termos roubados de cadernos de economia, foi pedante desavergonhadamente. Escreveu duas versões: a primeira pareceu-lhe auto-indulgente demais. Depois que concluiu a "provinha", teve que esperar uma boa quantia de tempo: a secretária o esquecera ali. Pensou em chamá-la, mas tudo que conseguiu foi fazer sinais estúpidos e tímidos com as mãos - ela estava do outro lado, atrás de paredes de vidro - sentiu-se como um aluno do primário pedindo permissão para ir ao banheiro. Enfim, ela o atendeu e após uma pequena espera, a entrevistadora o chamou até sua sala. Hora da entrevista. Olhou rapidamente para a correção da "provinha", inerte na mesa, ao lado de uma velha máquina de escrever - aparentemente se saira bem no teste aritmético, e a redação...Bom, acho que só exigiam para comprovar que o candidato era mesmo alfabetizado. Não posso acreditar que engoliriam aquela baboseira toda que ele escrevera. Vocês se surpreenderiam com a cordialidade e interesse que a necessidade pode inserir num homem. Durante a entrevista ele respondeu as questões prontamente, tentando até ser simpático, exalar alguma espirituosidade; não foi fácil, não estava acostumado - é claro que encenou, e em certos momentos teve bastante trabalho. Um deles foi quando a entrevistadora lhe perguntou sobre um certificado, uma exigência contratual, visto que este comprova que o candidato está apto a operar determinado tipo de máquina. Ele fizera o curso de segurança na empresa que trabalhava, só que não pegou o certificado; se tinha pego não lembrava onde guardara. A verdade é que só o fez por obrigação - enquanto o instrutor dava as aulas ele imaginava alguma maneira "alternativa" de escapar do curso(alguma coisa que não lhe custasse o emprego) Não conseguiu encontrar. Disse a entrevistadora que sim, que fizera o curso, mas infelizmente esquecera-se do certificado - ela frisou a importância do certificado e depois fez mais algumas perguntas de praxe, o dispensando logo em seguida. Ele aguardou mais algum tempo. A secretária inicial lhe entregou um envelope com a solicitação de um exame admissional - às 13:00 de uma sexta-feira, num lugar que ele desconhecia. Todavia, ainda precisava dar um jeito de arranjar o maldito certificado ou estaria encrencado. Pensou quanto custaria um no mercado negro. Não podia descartar a possibilidade. Ligou para um amigo, este prontificou-se a ajudá-lo. Bastava lhe entregar uma cópia ou modelo e a falsificação não seria tão difícil. Ele deixou implícito dizendo "Nóis damu um jeito", uma espécie de código marginal descolado. Ainda existia uma chance remota de não recorrer aos préstimos do amigo, encontrar o certificado na empresa que deixara para trás meses antes - e como não tinha mais nada a perder(o emprego já se fora mesmo), pegou o telefone e discou alguns números. Do outro lado uma voz conhecida o atendeu.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

VITAE

Hoje ele concebera e imprimira seu currículo - esperou quase duas horas numa lojinha que presta serviços tipográficos variados, daquelas que estampam em todos cantos, retratos e paredes frases do tipo "Não diga a Deus que você tem um grande problema. Diga ao problema que você tem um grande Deus". - "O Senhor é meu pastor, nada me faltará" e "Só Jesus salva " são as variáveis. Os proprietários da loja podiam ao menos ser mais criativos, salutou. Ainda gastou a paciência racionada da semana corrigindo erros cadastrais do atendente - cinco vezes, cinco vezes, o cara abusara da sua escassa boa fé. Distribuiria as cópias dos currículos mais tarde - caso o resultado fosse negativo, apelaria para um amigo, aluno de Letras, cara letrado, calejado e pintado em artes. Ele dizia que podia elaborar um currículo "moderno" usando apenas recortes de jornais e colagens de todo tipo. Ele sabia que precisava fazer com que seu currículo se sobressaisse naquela pilha de papéis de escritório. Também podia usar seus contatos - pedir que alguns amigos dessem uma forcinha, cessassem as hostilidades temporariamente, mentisssem positivamente a respeito dele; inventassem qualidades imaginárias, etc - tudo era válido no momento. Ele sabe que seu currículo não é lá grande coisa, mas não é tão ruim, com um pouco de boa vontade alguma empresa podia lhe contratar pelo "conjunto da obra". Ele teve alguns probleminhas com os currículos impressos naquela manhã - muitos amassaram quando foram colocados na mochila. Tentou colocar uns livros em cima, como peso, o resultado não surtiu o efeito desejado: passaria-os com um ferro quente antes de entregá-los.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

CONDICIONAL

Após resolver algumas pendências burocráticas referentes a rescisão do contrato de trabalho, encontra um amigo na cidade, vagam e vadiam a tarde inteira e, não satisfeitos, assim que encontram um amigo em comum dão uma esticadinha até a casa dele. Passam a noite fazendo piadas e brincadeiras bobas, rindo feito bobos de coisas tolas, ironizando seriados antigos que amavam na infância, tomando café, vendo videoclipes e brincando com um esqueleto de brinquedo simpático e um violão velho, muito antigo mesmo, segundo o dono herança de um avô falecido. Quando se dão conta já passava da meia-noite, esfriara muito e garoava. Ele despede-se dos amigos, volta pra casa a pé e a pique, esquecera a blusa e não obstante calculava quais eram as chances de chegar em casa antes que uma hipotermia lhe pedisse carona. Depois de um banho quente, uma pizza requentada, uma escova de dentes desgastada, a água gelada, o mouse, o teclado frio e um rosto conhecido no papel de parede do monitor, resta-lhe a cama desarrumada e quem sabe umas três ou quatro horas de sono.

domingo, 19 de abril de 2009

RONIN

Foi transferido de setor no feudo onde vassalava dia-a-dia. Houve muitas mudanças durante suas férias; muitas cabeças rolaram, uma mulher assumiu a direção e impôs milhares de restrições ditadoriais aos vassalos(entenda-se por antigos funcionários). Ela era uma espécie de Dama de Ferro - de longe lembraria aquela antiga primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, mas sem a típica elegância britânica. Apesar do comportamento subversivo, indisciplinado às vezes, ele foi salvo com a condição de trabalhar em outro setor e se comportar. Estava mais sossegado desde então; não por causa das condições - desconfiava que colocavam morfina no seu café-da-manhã. O fato é que lá passou a conviver com alguns caras que anteriormente só trombava no corredor. Naquela semana, a tardezinha, logo que voltou de um intervalo, encontrou um dos seus novos companheiros(e comparsas posteriormente) chupando limão com sal. Perguntou a ele como conseguia fazer aquilo - ele respondeu sem pestanejar:"chapa o coco domingo e vem trabalhar na segunda, daí você entende". Poxa, ele nunca imaginara que sal com limão era um remédio caseiro para ressaca. O que pôde imaginar mais tarde foi que químicos espertos patentearam a receita e venderam para as fabricantes do Engov, Sonrisal, Eno(as marcas escolhidas foram as mais citadas numa pesquisa que ele realizou nas dependências do feudo - um em cada três entrevistados; consumidores assíduos de bebidas alcoólicas, pés-de-cana, pudins de pinga, bebuns, paus d' água, cachaceiros, bocas de litro, bons de copo, blábláblá e derivados as citaram) A vitamina C também é um antigripal poderoso - no entanto, isso qualquer aluno do ginásio sabia. Seu novo companheiro(que lhe promovera a camarada em menos de seis horas) lhe ofereceu limão com sal várias vezes: ele, reticente, recusou todas - logo pensou o quão bizarro devia ser o gosto daquela combinação, enquanto esforçava-se para não salivar a contragosto. O cara que lhe oferecera a mistura era um sujeito vulgar, ignorante, grosseiro, mas tinha lá suas qualidades - pena que as lentes gastas dos óculos do camarada reticente não conseguiam enxergá-las direito. O reticente, e renitente de sobrenome, estava certo. Se alguma dúvida existia sucumbira depois daquilo, dera ali o último suspiro. Ele estava cercado dos exemplares mais estranhos da raça humana. Às vezes, se sentia num reformatório medieval. Todavia, não sabia bem o porquê nem explicar o que o fazia se sentir em casa.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

BASEADO NUM LIVRO


Cinco integrantes de religiões distintas(um rabino, um pastor, um padre e dois mórmons com lapelas na camisa com a inscrição Big Brother Brasil)estão sentados perto de uma fogueira, cada um deles possui um pequeno copo branco descartável em suas mãos - eles bebem goles do vinho São Tomé(ele não podia faltar afinal) enquanto alternam a leitura e discutem trechos de uma bíblia antiga, dando ênfase especial as parábolas e controvérsias apresentadas no livro sagrado. No centro, também sentado perto da fogueira, encontra-se um Cristo entediado, com a coroa de espinhos devidamente aprumada e que volta e meia tenta manifestar suas opiniões de maneira tímida e apática; dá meia volta e desiste, limitando-se a observar serenamente a discussão. Cristo olha incrédulo para garrafa de vinho e para o que vê. O pastor inicia a leitura com um trecho consagrado do salmo 23; faz uso de uma narrativa altiva, eloqüente e entusiasmada:"O Senhor é o meu pastor, nada me faltará..."- interrompe a narrativa no meio do parágrafo para bradar "aleluia" com toda força dos pulmões. Prossegue:"Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; refrigera-me a alma. Guia-me pelas verdades da justiça por amor do seu nome". Os integrantes restantes acenam com a cabeça positivamente. Ele faz uma pausa curta e conclui:"Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo" - ele então fecha a bíblia. A garrafa de vinho chega as mãos do mórmon oficial, que ao tentar oferecer um copo ao "estranho"(assim tratam a figura de Cristo que até então ignoravam) derruba o conteúdo do copo acidentalmente nos pés de Cristo - o mórmon se prontifica a limpar os pés dele, lamentando-se com "I'm sorry' s" consecutivos – Cristo não se exalta, põe a mão na cabeça dele, faz gestos com a mão pedindo que ele se levante, enquanto o segundo mórmon levanta uma placa com legendas em hebraico arcaico equivalentes ao pedido de desculpas do mórmon desastrado. O restante do grupo prossegue com a leitura da bíblia. Dessa vez o rabino se encarrega de ler um trecho do velho testamento: ele narra a ira de Deus sob o povo egípcio, elucidando o castigo que manifestou-se através das dez pragas:""Então disse o Senhor a Moisés: levanta-te pela manhã cedo, e põe-te diante de Faraó, e dize-lhe: assim diz o Senhor, o Deus dos hebreus: deixa ir o meu povo, para que me sirva. Porque esta vez enviarei todas as minhas pragas sobre o teu coração, e sobre os teus servos, e sobre o teu povo, para que saibas que não há outro como eu em toda a terra."[Êxodo 8, 9] O ser onipotente mostra-se prepotente e nem de longe vê-se a bondade incondicional que lhe é atribuída. As atenções se dividem após o término do discurso do rabino. O padre faz-se de desentendido e volta sua atenção para os lados, os mórmons parecem não entender o que acontece e o pastor abaixa a cabeça, murmura palavras incompreensíveis tentando convencer-se de que Deus sabe o que faz. É chegada a vez do padre: ele inicia um trecho da parábola que conta as desventuras de Jonas no estômago da baleia:"Preparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas; e esteve Jonas três dias e três noites nas entranhas do peixe. E orou Jonas ao Senhor, seu Deus, das entranhas do peixe. E disse: na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do inferno gritei, e tu ouviste minha voz".[Jonas 2] Vendo o Cristo cabisbaixo, o padre pergunta: "o que há de errado, filho?". Cristo cansa-se de ouvir histórias da carochinha, levanta a cabeça, joga fora a coroa de espinhos, pega a bíblia, rasga algumas folhas, enrola maconha nelas, acende na fogueira, dá uma longa tragada no cigarro fresco, uma piscadela e entrega ao padre, que boquiaberto assiste toda a cena. O padre olha para os lados, vendo que todos fingem que nada aconteceu, coloca o cigarro de maconha na boca e dá uma bela tragada que culmina numa longa baforada. O padre então diz, com um sorriso irônico nos lábios e num tom sarcástico:"nada mal prum baseado num livro". As luzes se afastam, quando voltam focam de relance o que restou da cena: sentado e tranqüilo, um demoniozinho vermelho de pelúcia assa um marshmallow na fogueira.


quinta-feira, 26 de março de 2009

AO LADO DE/PERTO DA/EM FRENTE A

Ele procurava informações, não conseguia nada digno de nota. Tinha apenas a carta contendo a convocação para o exame, o endereço anexo, nenhuma informação adicional; alguma coisa que pudesse orientá-lo, dar-lhe um "norte"de verdade. Ele estava ficando nervoso. Repetia impropérios contra a instituição realizadora do concurso, o local da prova, o calor infernal, tudo - xingava baixinho, como quem diz "estou-irritado-muito-puto-da-vida-e-cansado". Depois de três tentativas frustradas, entrevistas falhas, resolveu perguntar para um senhor, dono de uma banca de jornais. O velho pensou um pouco, sobressaltado lhe passou o nome do ônibus errado, titubeou e se contradisse, lhe dando enfim a informação correta - Ele agradeceu, andou poucos metros e passou a esperar pelo ônibus. Não esperou muito tempo, embora o calor insuportável transformasse toda espera, por menor que fosse, em perpétua e compassiva. Dentro do ônibus pediu informações ao cobrador que se dispôs a lhe ajudar de muito má vontade - o cobrador disse que lhe avisaria, mas que Ele o avisasse com antecedência. Oras, como Ele poderia fazer isso? Não sabia onde se encontrava, quanto faltava até a universidade. Ele teve outra idéia: passou a observar cuidadosamente todos passageiros que ingressavam no ônibus, na esperança de reconhecer algum estudante da universidade. Não deu certo. Ninguém parecia com o que imaginava ser um estudante universitário. Notou a presença de uma garota, muito bonita, com uma pasta na mão, no entanto as roupas dela não pareciam com as de uma universitária, pensou. Avistou outras, mas os trajes despojados mostravam-lhe que estava definitivamente na pista errada. Notou que uma delas não carregava nada nas mãos, mas a mecha rosa no cabelo escuro reteve sua atenção. Ficou ali, olhando para a mecha que desbotava, pedia nova pincelada, mas que ainda despertava nele o fascínio pela beleza das peculiaridades femininas. Durante sua investigação inevitavelmente esbarrou em outros "atributos" da jovem, no entanto prefiro não comentá-los - era só a testosterona fazendo o papel dela. A mecha foi o que lhe manteve distraído até que a jovem saísse do ônibus. Ele viu um quarteirão inteiro tomado por fábricas de manequins. Via manequins de todos os tipos: homens, mulheres, crianças, manequins imagináveis, inimagináveis, passando pelos críveis e incríveis. Alguns estavam mutilados, possuíam só o tronco, outros foram decapitados, outros só tinham os membros inferiores e não era difícil encontrar versões da Vênus de Milo em cera ali. A viagem demorou bastante - Ele ainda desceu meio quarteirão depois da universidade, graças ao cobrador "muito prestativo" que se esqueceu e lhe esqueceu também. Ele pediu novas informações, encontrou a rua, o prédio errado, deu meia volta e finalmente alcançou os portões da universidade. Confirmou o endereço, voltou satisfeito, não sem antes fotografar as redondezas - caso precisasse se orientar usaria as fotos do celular; pareceu-lhe uma grande idéia a princípio, depois viu que não era nada especial - seria se Ele fosse um investigador, detetive de alguma série ou filme estrangeiro talvez. Teve problemas na volta, pegou o ônibus errado, o que custou-lhe muito tempo em caminhadas até a descoberta da linha de metrô mais próxima. Ele podia ter perguntado ao cobrador, este parecia mais receptivo que o anterior. O sujeito usava óculos escuros comprados no camelô e cantava os versos de algum "pagode mauricinho" - Ele achou melhor não interrompê-lo. "Este cara não pode ser minha fada madrinha", presumiu. Precisava de uma bússola, não tinha dinheiro para um GPS e não sabia se empresas de tecnologia experimental lhe aceitariam como coba, digo, voluntário no implante de um GPS interno. Ele teria que sair de madrugada no dia da prova, assim não correria o risco de se atrasar e ser desclassificado logo de cara. Se bem que ficar horas sentado, ver o sol nascer retangular, não é era nem um pouco poético...Nem um pouco mesmo! Mas quem disse que seria? Faria o possível e torceria pelo o que é bastante improvável, mas não é impossível.

quinta-feira, 12 de março de 2009

ESTÉREO

Lado Esquerdo:

Depois de muito tempo Ele voltava a escola onde concluira o ensino médio. Não havia tempo para prolongar nostalgias, visto que só estava interessado no seu histórico escolar. Enquanto a secretária(que curiosamente fora da turma dele)procurava por seu nome em pastas recheadas de arquivos empoeirados, uma professora notou a movimentação, aproximou-se da bancada e perguntou ao estranho se Ele fora seu aluno no passado. Ele respondeu depois de pensar 1/4 de minuto, que não, não lembrava dela - ela frustrou-se um pouco com a frieza do estranho. A secretária confirmou a história dele. A professora insistiu, perguntou se Ele tinha irmãos, se estes foram alunos dela. Ele deu o nome de seus irmãos, ela então se adiantou: disse que eles foram seus alunos e que conhecia muito bem um deles - Daniel, o irmão caçula. Havia um misto de desafeto e nostalgia na voz dela. Só então Ele reparou nos detalhes, foi além do cabelo loiro, as rugas bronzeadas que moldavam os olhos amendoados insinuantes da professora. Ela já atravessara a marca dos 40, mas mantinha-se vistosa e vaidosa, vestia uma calça jeans de um número menor, usava um batom vermelho-luxúria, sapatos pretos de sato alto e uma bata preta que destacava o decote avantajado. Ela lhe perguntou se Ele morava ali mesmo ou na capital, nunca o vira antes segundo ela. Ele achava aquela conversa toda muito estranha, mas entreteve a professora até a secretária encontrar o dito histórico cujo o valor tornara-se indispensável - sem adiamentos Ele se despediu. No ponto de ônibus lembrou de uma coisa: cerca de dois anos atrás, na época em que seu irmão caçula preparava-se pra concluir o segundo grau, chegou aos seus ouvidos um boato: aparentemente o irmão caçula se envolvera com uma professora. Juntando as peças do quebra-cabeças ficou fácil entender como seu irmão mantinha a média escolar sempre alta em algumas disciplinas(ahh moleque safado!) Talvez fosse paranóia, quem sabe estivesse superestimando as cafajestices do irmão, dando-lhe novas proezas, mas os olhos dela lhe deixaram com uma pulga atrás da orelha.

Lado Direito:

Ele resolvera dar uma folga as dúvidas. Pouco menos de uma hora depois, chegou a cidade escolhida, entregou o histórico escolar a diretoria de ensino responsável. Restava esperar a avaliação final. Caso lhe aprovassem haveria o processo de seleção de escolas que dependia primordialmente da colocação final do candidato. Podia ser enviado a uma escola rural, local onde os pais lhe chamariam de "cumpadê" e os alunos de "primo". Bastava se esforçar, dedicar-se com afinco e afetação, que ganharia bolo de milho caseiro toda semana. A troca do boné por um chapéu de palha pode lhe ajudar, assim se "enturmaria" mais rápido, imaginou...Só então pensou: também podiam lhe enviar pra alguma escola barra pesada, local onde pais lhe ignorarariam e alunos lhe chamariam de "mano", lhe ofereceriam um "bagulho" na hora do recreio. Desistiu. Não adiantava, aquelas suposições não o levariam a lugar nenhum. Acenou pro ônibus que vinha, ligou o mp3 e desligou-se delas.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CRÔNICA PLUVIAL

Antes do início, deixe-me dar uma prévia do que Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo concluiu no fim: definitivamente ele precisava ingressar numa escola de natação - apesar de ser pisciano, não sabia nadar. Tá, tá sei que era patético não saber fazê-lo com idade que tinha, ninguém precisa lembrá-lo. Tudo estaria bem, uma vez que ele sempre evitou praias, rios, piscinas e quaisquer locais que alocam uma quantidade de água superior a uns 0, 25 metros cúbicos(a quanto equivale isso mesmo?) No entanto, num sábado de um dia qualquer ele saiu de casa em direção a algum lugar da metrópole. É assim que ele chama a parte do estado onde as coisas acontecem. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo mora numa cidadezinha provinciana, uma espécie de prima pobre da Metrópole, um lugarzinho afastado do centro, agitação e quaisquer coisas realmente interessantes. O tempo naquele dia era estável e a temperatura amena, porém esta cresceu gradativamente durante o percurso dele. Ele não sabia exatamente como chegar ao seu destino, já que tinha apenas um mapa improvisado numa folha de papel amassada e um senso de direção duvidoso. Após andar quadras e quadras a pé, telefonar umas três vezes pedindo orientações e, suar como um cavalo, encontrou o dito e escrito local – as horas seguintes foram bem agradáveis de fato, apesar de uma senhora que já graduara-se nas artes balzaquiânicas ter lhe assediado e o colocado em maus lençóis. Bares escondem perigos atrás de mesas, cadeiras, especialmente copos de cerveja. Ele precisava voltar para casa no mesmo dia, sabia disso. Embora se dispusessem a pernoitá-lo, ele tinha que estar presente no aniversário de um amigo de longa data no outro dia. Logo pela manhã cuidaria dos detalhes com outros amigos. Voltou às pressas, agora sem muitas dificuldades, no entanto quando chegou a um certo ponto, foi surpreendido por um temporal, um daqueles típicos de filmes-catástrofe-hollywoodianos - uma daquelas enchentes que outrora só conhecia pelos noticiários. Agora imaginem um cara descendo uma marginal inundada às 11:30 da noite, correndo como um alucinado(corra Forrest, corra!) para não perder o último ônibus. A água invadira as calçadas e arrastava as coisas que encontrava pelo caminho. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo desviava dos pontos mais alagados com dificuldades. Parou perto de um farol, a visibilidade estava muito ruim - ele sentia a falta dos óculos, embora a armação não contasse com um pára-brisas conjugado(coisa que só cientistas malucos ou sujeitos muito excêntricos devem ou deveriam possuir). Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo, num momento de otimismo efêmero, quase delirante, cogitou a aparição do resgate na forma de um velho de barba branca e longa em sua arca gigantesca, que bradaria: “ei, ei rapaz! Quer uma carona? Ainda não temos nenhum animal da sua espécie aqui”. Depois de uns 10 minutos avistou o último ônibus para a cidade vizinha. Correu com tudo que restara de suas pernas – não sobrara muita coisa. Quando entrou no ônibus, foi obrigado a suportar os olhares curiosos dos outros passageiros e a cara-de-pau do cobrador que lhe indagou com ironia e retórica: “você se molhou, hein?!"(como se aquilo fosse um momento raro de epifania) – Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo estava encharcado dos pés a cabeça. Sentia que um alevino podia saltar do seu All-star a qualquer momento. Não sabia o que tinha na coca-cola que tomara horas atrás, mas coisas como peixinhos coloridos saindo de suas meias reproduziam-se em sua cabeça. Assustou-se e investigando os arredores, percebeu que sua imaginação estava lhe pregando peças. Notou que a viagem estava demorando mais que o habitual - é que até então, não sabia que mudavam a rota durante este horário – cortavam outro município antes da conclusão da viagem. Logo um temor tomou proporções inesperadas. E se tudo não passasse de um plano arquitetado por uma quadrilha especializada em tráfico de órgãos? Sabe-se-lá onde e como ele acordaria! Sem um rim, numa terra estranha com estranhos que o olhariam com estranheza, como estrangeiro. Mudança de itinerário. Como desconhecia esse detalhe, deixou que sua mente o levasse até seus porões. Começara mais uma corrida contra o tempo. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo tinha que estar no ponto à 01 hora da manhã ou teria que passar quatro horas na companhia de cães e bêbados. Apesar da rota inusitada chegou a tempo no ponto. A garoa substituira o temporal e não havia uma única luz acesa nas casas do quarteirão. Um sujeito estranho apareceu e começou a lhe fazer um bocado de perguntas, que ele respondia o mais laconicamente possível. Pontos de ônibus são chamarizes para este tipo de gente, imaginou. Olhou o sujeito estranho enquanto ele se distraia com alguma coisa alheia a seus olhos - ele não parecia um fantasma. Ao menos não encontrou nenhum resquício de atividade espectral/ectoplásmica nele. Riu por um instante: era uma pena, parecia-lhe um bom começo pra um conto a la "Goosebumps". Viu luzes vindo em sua direção, acenou pro ônibus, entrou e durante o trajeto, antes do fim linha, encontrou um conhecido – este não perdeu a oportunidade de caçoar do estado dele. E dizer que tudo começou com um telefonema, doravante, um convite(“venha até aqui, estarei te esperando...”) Moral da história: não aceite coca-cola se esta lhe parecer borbulhante demais – ali existe alguma coisa além da simples e tradicional reação química envolvendo o oxigênio.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Mensagem Numa Garrafa...

- Tudo bem, tudo bem, mas você nunca ouviu o que dizem, que não se deve falar com estranhos, moça? – os olhos do estranho olhavam para os de Nah fixamente. O olhar dele intimidava Nah, entretanto, o choque inicial passara e ela já podia lidar com aquilo sem apelar para os óculos escuros na bolsa.

- Sim, já ouvi...Bastante. Minha mãe fez o dever de casa direitinho. Ensinou-me isso e muitas coisas, mas sabe, nunca entendi direito, talvez não devesse ter matado tantas aulas, whatever...Entende? – Nah não entendia porque estava contando tudo aquilo para um estranho, porém não se sentia mal com a idéia.

- Não, não entendo moça, desculpe: sou órfão.

- Sinto muito, eu não queria...- Nah ficara muito constrangida. Os cálculos da distância que separavam a calçada de seus pés se somavam a outros pensamentos desconexos. O estranho percebendo seu constrangimento, disse:

- Mas minha avó sempre me dizia isso também.

- Sério?! – Nah disse, surpresa.

- Não, não é sério moça. Menti para fazer...- antes que o estranho terminasse, Nah disse em uníssono:

- “Com que se sentisse melhor” – os dois riram ao mesmo tempo.

- Obrigado...Estranho. Devo te chamar assim ou você tem outro nome, rapaz? – Nah indagou sorridente.

- Ah perdão! Onde estão meus modos? Prazer sou o Away, mas pode me chamar de estranho se preferir – Way estendeu sua mão, apertou desajeitadamente a de Nah e recuou dois passos.

- Prazer, me chamo Nah Away, ou estranho “anyway” – Nah e Way riram de novo. Um riso tenso, nervoso, que consumia o que fora dito nos últimos três minutos.

- Então, agora que esclarecemos os desentendidos, poderia me dizer o que são aquelas cartas, Way? – Nah apontava o dedo na direção das que ainda podiam ser vistas dali.

- Nada especial...Versos roubados, canções de amor emprestadas, filosofias inventadas...Nada que mereça muita atenção, creio – Way disse num tom profundamente melancólico. Nah virou-se, apoiou o cotovelo sobre o parapeito do viaduto, olhou para Away, colocou o punho debaixo do queixo e disse:

- Parece legal. Way, acho que gosto de mentiras bonitas! – Nah voltou seu olhar para as cartas, com um sorriso na ponta dos lábios e o entusiasmo impresso nas sobrancelhas. Away esboçou um sorriso borrado, apagou-o ligeiramente, lembrou-se de Shakespeare, um dos charlatães mais brilhantes que conhecera, abriu a palma da mão, inclinou os dedos como se segurasse um crânio imaginário e disse declamando, num tom demasiado cômico:

- Não são mentiras madame; são verdades vencidas!

- Pois bem, que assim seja cavalheiro! – Nah embarcara na Caravana de Devaneios de Away.

Os guichês da estação reabriram, o alvoroço cessou, Nah despediu-se de Away apressadamente, apertando o passo e os pés para comprar o bilhete de embarque a tempo. Comprou o bilhete, arrependeu-se uma duas três vezes - relutava em cruzar a catraca quando a Sorte atendeu suas súplicas silenciosas:

- Nah! – disse Away. Nah parou, respirou fundo, virou-se e disse gastando a simpatia racionada do dia:

- O que foi?

- Você esqueceu isso – Away entregou um guarda-chuva preto para Nah. Ela agradeceu envergonhada, depois de alguns passos acenou e disse tchau timidamente. Nah sentia-se meio estúpida por encerrar a conversa assim, sem um posfácio, uma troca de telefones, email’ s, enfins sem afins, contudo não havia mais tempo. Passaram-se uma semana, duas, três, um mês talvez, o estranho não deixara nenhum vestígio de sua presença na estação. Nah já desistira de persegui-lo em sonhos, ruas, rostos, avenidas e esquinas, quando notou a presença de um objeto de plástico no parapeito onde conversara com Away. Aproximou-se, apressadamente pegou a garrafa de água mineral vazia e a abriu: ela continha um bilhete em papel-cartão que dizia “Away - Mentiras sob Encomenda”, e um número de telefone abaixo. Nah sorriu sozinha e solene, lendo o recado no verso do cartão, riu demasiadamente – ele dizia: “Faça um pedido, mas não ESFREGUE a garrafa!”.

domingo, 11 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: O Lá!

Ela normalmente dar-se-ia por satisfeita, mas o estranho no corredor parecia lhe desafiar; pedia que Nah transgredisse suas convicções. Nah aproximou-se do estranho, aproveitando o tumulto causado pelo fechamento repentino dos guichês da estação. O sujeito não notara a presença dela – continuava com os braços sobre o parapeito do viaduto, olhando para as cartas que se afastavam rapidamente. Nah estava à cerca de um metro e meio dele, do lado direito, apoiada sobre o mesmo parapeito - uma distância que considerava socialmente segura, afinal, se havia uma lei em que acreditava era a que dizia que dois estranhos não podem ocupar um espaço comum menor que um metro ao mesmo tempo. Nah abandonaria seu ceticismo aos poucos, deixando um pedacinho de lógica ali, um bocado de razão pra lá:

- Você sempre faz isso? – Nah se arrependera até o último fio da mecha roxa do cabelo pela indagação. De onde Diabos tirara aquilo? De algum manual de regras de etiqueta em liquidação? Nah envergonhara-se...Muito. Media com os olhos a distância que separava a calçada de seus pés. Respirava com alguma dificuldade, cabisbaixa, encarando as meias bicolores das pernas que tremiam. Tentava se acalmar contando mentiras para si mesma (“talvez ele seja surdo”, “quem sabe estava tão distraído que nem percebeu”, “ele é autista, isso!”, ”UFA! Essa foi por pouco dona Nah”) – Nah parecia mais tranqüila. Quando estava pronta para partir, a voz do estranho chegou até seus ouvidos:

- Não, só quando eles não estão olhando – o estranho apontava para alguns sujeitos vestidos com um uniforme laranja, sentados nos bancos de uma padaria, tomando café e assistindo o noticiário – o estranho não mudara de posição. A voz dele era grave, baixa e ele falava pausadamente, tomando cuidado para não atropelar seu léxico.

Depois de investigar por um instante os arredores, ele virou-se para Nah, olhou para a bolsa que ela carregava, a roupa dela e as meias bicolores - estas prenderam sua atenção durante meio tempo. Disse num tom de voz ainda mais baixo, como se estivesse contando um segredo e temesse ser descoberto a qualquer momento:

- Você é um deles? – os olhos do estranho repousavam sobre as meias bicolores de Nah. Nah respondeu abruptamente, rindo:

- Não, não sou um deles! – Nah não conseguia olhar para o rosto do estranho seriamente. Depois de se refazer prosseguiu:

- Olhe, nem estou vestida de laranja.

- Nada a impede de ser uma agente disfarçada ou estar à paisana – o estranho parecia perturbado. Nah não acreditava naquilo, o sujeito estava mesmo falando sério.

- Eu não sou uma agente disfarçada nem estou à paisana, então pode se acalmar, tá? – Nah evitava rir, mas a Ironia estava perto, muito perto, escondia-se na prosa e gestos.

domingo, 4 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Estranhos Conhecidos.

Nah mais uma vez esperaria pela revanche. As discussões continuaram, os empates técnicos também, até o dia em que Nah desistiu de convencer a mãe que a menina-moça já era uma mulher. Trancou a faculdade de Pedagogia, arranjou trabalho numa empresa de eventos e alugou uma casinha, do outro lado da cidade. Ali não precisaria se preocupar com as meias espalhadas pela sala, as barras de chocolate vencidas no armário e nem prestaria contas sobre a origem e condições financeiras de um novo namorado. Nah gostava da nova vida; do cheiro de sabão em pó da lavanderia, dos milk-shakes de ovo maltine sem restrição nos finais de semana, dos copos de café e disposição na padaria da esquina, de dormir com a televisão ligada, vendo documentários e reportagens investigativas, andar seminua de madrugada pela casa ou passar a manhã inteira enrolada numa toalha de banho, conversar com Margô, uma mandrágora cultivada no jardim guardado por gárgulas de gesso, e Dorothy, uma guitarra strato vermelha, que passava horas no colo de Nah – enquanto ela sentava-se na frente do espelho, em cima do tapete rubro cheio de velas e marcas de cera, tocando e compondo iê-iês e lálálás - excentricidades que ela preferia manter em segredo, longe do olhar de terceiros. Nah provava as coisas casuais e corriqueiras, sem pressa e moderação, sentindo-se mais e mais lúdica a cada pedacinho de trufa arrancado suavemente, enquanto ia-e-voltava-e-ia do trabalho. Nah ampliara seu círculo social significamente, conhecera gente muito interessante, gente muito estranha, gente de verdade também (um rapaz que vendia balas de goma nas ruas, uma senhora com seus quitutes, um senhor que anunciava as frutas de sua barraca com apitos e um megafone...) Mas ninguém, ninguém mesmo, parecia com aquele sujeito engraçado que conhecera no viaduto que dava acesso ao corredor da estação de metrô. Ele parecia completamente indiferente ao espaço e tempo que o cercava, olhando para as pessoas que marchavam lá embaixo, em direção a seus quartos-hotéis, deveres e afazeres (quem sabe, talvez, mais um dia, outra vez, que seja) O rapaz tinha a barba por fazer, olhos pretos e o cabelo castanho escuro brigara com a escova de manhã; vestia um jeans desbotado e uma camiseta preta de uma banda underground que menos de 0,3% da população mundial ouvira falar, e calçava sandálias pretas que exibiam os pés pálidos – ele carregava uma mochila transversal e volta e meia, pegava a garrafa de água mineral guardada nela, dava alguns goles e a colocava de volta. Tirava um bloco de notas da bolsa, rabiscava algumas coisas ilegíveis, dobrava cuidadosamente as folhas, transformando-as em envelopes muito pequenos, com asas nas bordas e lançava-os no ar – o vento se encarregaria de levá-los embora, entregar as cartas endereçadas a alguém. Nah observava as cartas espalhadas no ar e com um alumbramento raro, imaginava o que o rapaz escrevera em cada uma delas: poemas, canções de amor, manifestos políticos, filosofias de rodoviária, versículos, pedidos de socorro, mensagens subliminares(aretècte e siat!) e muitas outras coisas passeavam por sua cabeça.

P.S: "É, essa semana demorou mais que o esperado pra chegar - problemas técnicos e uma indisposição costumeira atrasaram o processo"...(Di' stante Enfim em nota não-oficial)