quarta-feira, 15 de outubro de 2008

24 [3]

Prosseguimos a viagem a pé e a passos. Ele me mostrou um mapa que imprimira um dia antes, tive que confiar nos dotes ocultos de navegador dele, não tinha opção, tampouco fazia alguma idéia de onde e quando chegaríamos. Percorremos um bairro nobre de São Paulo, uma parte da cidade que deu certo: construções bonitas, ruas arborizadas, algumas com árvores de caules imensos; pareciam sequóias africanas, calçadas limpas, um lugarzinho bem agradável de se ver. Encontramos um senhor, um verdadeiro trovador, que bradava com um jornal em mãos que a polícia entrara em greve, enquanto nos encarava com um semblante etílico que tantas vezes presenciáramos na vida. Por incrível que pareça não nos perdemos e menos de uma hora depois avistamos o teatro. Esperamos num banco típico de praça a abertura do guichê. Enquanto degustávamos as barras de cereais, meu comparsa recebeu o telefonema de outro comparsa, o que o convidara em primeira instância - ele estava a caminho e parecia perdido. Meu comparsa fez o que pode pra orientá-lo, eu resolvi comprar água. Não foi fácil, não havia uma única padaria ou boteco nas redondezas, eu só avistava restaurantes luxuosos e me perguntava se vendiam garrafas de água nesses lugares. Depois de uns vinte minutos de caminhada achei um oásis, digo boteco. Bairros burgueses são inviáveis pra mim, imaginei. Quando o guichê abriu veio a surpresa: a peça seria apresentada estritamente pra alunos de uma universidade local. Meu amigo protestava em silêncio, assim que o silêncio lhe pareceu barulhento, me confessou que não xingara a moça do guichê porque ela era muito educada e bonita, sobretudo do lado dela havia um segurança, um desses leões de chácara que o desencorajava com os olhos e o intimidava com os músculos. Voltamos rindo de nossa própria desgraça, ironizando, satirizando nossa falta de sorte. Hipotetizamos a possibilidade de tudo não ter passado de uma pegadinha; talvez estivéssemos em algum tipo de reality show, no entanto por mais que eu procurasse não encontrava sinais das câmeras escondidas - era real, e não era legal. Nosso comparsa perdido ligou outra vez, disse que chegara lá, meu amigo lhe contou o ocorrido e pediu que ele tentasse persuadir uma amiga que era estudante da universidade a ir até lá com dois amigos e conseguir os ingressos. Mas não dava mais tempo, ele não ligava de volta, esperávamos sentados e cansados num ponto de ônibus. Eu tocava uma música no violão recém-adquirido por meu comparsa, pessoas passavam, olhavam, algumas admiravam, outras riam, esqueciam e se iam.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

24²

Começamos nossa longa caminhada subindo uma avenida movimentada; carros, faróis, prédios e de vez em quando gente de verdade. Eu carregava minha mochila no toráx e abdome, parecia um marsupial e meu comparsa, biólogo formado, não pode deixar de rir bastante com meu comentário - emendou, no tom sarcástico e irônico habitual que "marsupial no Brasil é gambá". Ele flertava através de olhares com as moças bonitas que passavam(ou passeavam) em ônibus, admirava solitariamente algumas sílfides desavisadas que cruzavam nosso caminho - eu via tudo e ria comigo mesmo. Ele brincava dizendo que se não éramos irmãos em outra vida, éramos farinha do mesmo saco - só isso explicaria nossa sincronia nos pensamentos. Muitas vezes nem falamos nada, um apenas olha pro outro e sabe, é como a telepatia que você não encontra nos filmes de ficção. Meu comparsa trazia na mochila barras de cereais com chocolate prum inverno inteiro, placas de rede que eu havia lhe entregado antes por medo de esquecer depois, baquetas e esperanças. Como havíamos combinado, assim que chegamos numa rua famosa por ser um antro musical(há lojas de instrumentos nas quatro direções), fomos ver um violão pelo qual meu comparsa se apaixonara menos de uma semana atrás. Ele não toca o instrumento; faz conservatório de bateria há menos de três meses, tem um baixo mas não sabe tocá-lo também, no entanto é um colecionador de instrumentos dedicado - ele tenciona aprender a tocar todos eles um dia. Ele diz que toca berrante, mas não sei se é verdade nem sei se existe uma escala musical pra isso. Testei o violão durante alguns minutos, dei um veredicto positivo; gostei do instrumento - geralmente sou um cliente chato, testo muitos instrumentos e não levo nenhum e dessa vez não seria diferente, mas meu comparsa estava apaixonado pelo violão e o amor fez com que ele estragasse meus planos - fechou negócio com o vendedor poucos minutos depois. Ele parecia uma criança com um brinquedo novo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

24 - (0)

"Eu continuo vivo", não, não é isso, antes que alguém pense o contrário direi que não trata-se do refrão daquela canção bacana do Pearl Jam - essa expressão resume a sensação que tive ao deixar pra trás um dos maiores cemitérios do estado. Sai de casa pra ir ao teatro, acabei indo a um (o)cemitério; todavia toda história tem um começo e a minha não começou assim. Segunda-feira recebi o convite de um amigo e comparsa de longa data - ele disse que haveria uma apresentação gratuita do apresentador do programa "Provocações" da Cultura, num teatro que fica na capital do estado. Achei o convite meio intelectualóide e repentino, afinal eu vi o programa poucas vezes e, embora atestasse a qualidade não imaginava que o fato fosse entrar pra minha retrospectiva particular do ano. Aceitei, sem muito entusiasmo e laconicamente como de costume. Acordei cedo, encontrei meu comparsa no ônibus, conversamos sobre livros, filmes, música, filosofamos sobre tudo isso e mais um pouco, rimos de coisas bobas como bobos; inclusive, ouvi durante a viagem de ônibus a máxima do dia:"O que sua imaginação permitir e a física adequar" - meu comparsa, um canalha muito espirituoso por sinal, divagava sobre uma fantasia sexual, uma espécie de orgia experimental usando o corredor que dá acesso a catraca, mulheres nuas com as mãos atadas as pequenas alças pretas, similares as de mochilas, que ficavam presas numa barra de ferro superior do ônibus. Eu ri muito. O cara é um pervertido declarado! Eu não sabia ainda, mas aquele dia seria repleto de pérolas negras. Antes de descer do ônibus, vi que meu comparsa olhava com olhos de lobo pra baterista da antiga banda da minha irmã. Ele não sabia, quando contei o cara quis me matar - teimava que eu devia ter lhe apresentado; logo eu, que sou um péssimo relações públicas.