sexta-feira, 18 de abril de 2008

SOBRE ANNA: Fugaz.

Os primeiros passos fora do quintal da Sra.Gossip foram lentos e desajeitados. Dionísio embriagava-se com a imagem dos insetos que cortejavam as lâmpadas da rua. No entanto, a luz fraca fez com que suas pupilas se dilatassem, seus sentidos se aguçassem e, refeito da embriaguez inicial, Dionísio já desfilava a elegância típica das criaturas da noite. Ele olhou para o céu, fez uma reverência a mãe de todas as criaturas da noite e subiu num telhado próximo, desaparecendo logo em seguida. Perto dali, não muito longe, Anna não conseguia dormir outra vez. Fantasmas (velhos conhecidos) sussuravam coisas em seus ouvidos. A orquestra oficial de grilos de Anesthesia tocava uma sinfonia singela, em lá menor e ritardo, obedecendo rigorosamente a partitura escrita pela Insônia. Anna esticou o braço esquerdo e, após duas tentativas frustradas e inúmeros palavrões, pegou o maço de cigarros sobre o criado-mudo. Fumou meia dúzia deles, tragando lentamente, expirando fumaça, ansiedade e sonhos pelas narinas. A Insônia chegara de mansinho, desfizera as malas e se hospedara ali. Naquela noite Anna tomara uma decisão: compraria incensos de maracujá pela manhã.

sábado, 5 de abril de 2008

SOBRE ANNA: Gatos e Mitos.

Dionísio olhava o mundo pela primeira vez – ele parecia maior em seus sonhos. Até agora tudo que enxergara na vida fora quatro paredes de tijolos alaranjados, uma casa velha e inacabada, alguns vasos de violetas, uma árvore moribunda no quintal e um confortável cesto de roupas; além dos companheiros de lar e uma senhora de meia-idade que lhe acariciava e contava-lhe o quão as coisas estavam erradas. Dionísio não se importava, os afagos gentis da Sra.Gossip mexiam com sua vaidade felina. Enroscava-se nas pernas magras e tortas dela, ronronava alto, cobrava o que julgava seu de direito. Não era um mundo ruim. Mas não ser ruim não bastava. Ele queria mais. Pedia mais e, desde os primeiros passos trôpegos, ensaiava uma fuga. Ela seria durante a noite – enquanto todos estivessem dormindo. Dionísio mal podia esperar para ver as luzes da rua, que adentravam o quintal pelas frestas do muro esburacado. Marlene Gossip nem desconfiava de suas intenções. Afinal, ela sempre manteve uma relação maternal com seus trezes companheiros. Ali, isolada do convívio humano, não lembrava em nada a senhora de meia-idade sisuda que inspirava o imaginário popular de Anesthesia. Havia uma lenda local a respeito da repentina mudança dela para a cidadezinha. Diziam que certa vez, incontáveis anos atrás, Marlene Gossip fora uma coruja, que despojada do seu ninho por aves hostis(falcões e águias), resolvera fixar-se na terra na forma de uma senhora de meia-idade sisuda. A árvore seca no meio do quintal seria os seus verdadeiros aposentos. As cortinas do quarto e da sala da casa, ficavam abertas durante à noite e fechadas durante a maior parte do dia. O vento agitava as cortinas trazendo ar fresco e as folhas secas do outono – aliviava o cheiro insuportável de mofo que impregnava as paredes da casa inteira, apesar de um órgão antigo, construído em mogno maciço, permanecer intacto na sala de estar. Ele exalava uma fragrância similar a verniz novo e acentuado. Dionísio dormia em cima dos sapatos que a Sra.Gossip esquecia debaixo do órgão propositadamente. Logicamente ele se aproveitava do fato de ser o caçula e a menina dos olhos da Sra.Gossip, para pregar peças nos 12 companheiros. Ele fazia jus a alcunha que recebera da senhora de meia-idade. Derrubava objetos pela casa, vasos de violetas, a tigela com leite de Narciso, perseguia pobres ratos e insetos atropelando aqueles que ousassem atravessar seu caminho e, como se não fosse o bastante, deixava os cadáveres das vítimas por toda parte. Louças, peças de cerâmica, mármore, obsidiana, nada escapava incólume a sua hiperatividade descomunal. Zeus já cansara de lhe pregar sermões na forma de belos e acintosos arranhões. Não adiantava. Agora limitava-se a assistir do telhado a agitação no quintal. Transformara a cumeeira no seu trono – o telhado no próprio Olimpo. Às vezes, Apolo sentava-se ao seu lado e os dois ficavam a confabular meios mais eficazes de conter a hiperatividade atípica do jovem felino cinzento, doravante, reestabelecer a letargia de outrora. Apolo era um gato siâmes gordo e branco como algodão. Quando sentava-se no telhado, um olhar mais descuidado, confundiria-lhe com um pedacinho de nuvem matinal. Alheio aquela algazarra inteira estava Hades. Hades gostava de ficar sentado na banqueta estofada do órgão. Ficava com as patas dianteiras e orelhas eretas, enquanto os dedos pálidos da Sra.Gossip repousavam sobre as teclas do órgão desafinado. A Sra.Gossip passava horas e horas extraindo melodias dissonantes, tensas, que lembravam os filmes antigos de terror que ela assistira escondida dos pais, debaixo de um cobertor quente, iluminado por uma vela e o reflexo vindo do televisor preto e branco. Quando cansava-se e a Vida não lhe parecia doce o bastante, visitava a adegazinha que construira nos fundos do quintal. A primeira garrafa de vinho trazia um alívio imediato. A segunda um êxtase indizível. A terceira um esquecimento passageiro. A quarta...A quarta parecia-se com a terceira. A quinta selava o pacto com os deuses. A Sra.Gossip encorajava Hades a acompanhá-la num dueto. Minutos depois via-se um Vulto Negro, assustado, com duas gemas de ovos no lugar dos olhos, entrar pelo buraco no sótão:

- Volte aqui! Não sejas tímido meu menino! – exclamava uma senhora de meia-idade embriagada pelos prazeres de Baco. Dionísio costumava encontrá-la bêbada, deitada no carpete da sala, dormindo tranqüilamente ao lado de almofadas, garrafas, cápsulas e comprimidos. Naquela noite não foi muito diferente. Ele lambeu-lhe a orelha, ronronou alguma coisa inaudível em seu ouvido, despediu-se e saiu devagarzinho pela porta, de soslaio, pisando em nuvens para não ser descoberto. Um mundo novo esperava lá fora.