domingo, 28 de outubro de 2007
O PRESENTE DE SATURNO
Laura despertou pela segunda vez, dirigiu-se a cozinha e estupefata, constatou que alguma coisa peluda fizera uma festa sem convidá-la. Antes que percebesse um extenso”putz”saltou da sua boca até a mesa – mordiscou os lábios censurando-os. A caixa de cereais roída, derramada sobre a mesa, não deixava dúvidas: ele voltara. Ela comprara algumas armadilhas para ratos, porém o fabricante não se responsabilizava pelo uso indevido, afinal, furões não são ratos, embora pertençam a mesma família. Laura bufou, pegou a pá perto da pia e com a ajuda de um pano, apagou os vestígios da travessura noturna. Vasculhou o armário, fogão e a geladeira em busca de algo prático, instantâneo e comestível – era adepta do”não faça, compre feito”. Não sobrara nada. A cidadezinha mais próxima ficava há uns 40 minutos de bicicleta, no entanto ela estava às voltas com a entrega de um relatório. Tinha um prazo apertadíssimo e as cobranças do instituto nacional de pesquisas espaciais. Caso cortassem sua verba, Laura já decidira o que fazer: venderia a idéia de casa-observatório para uma construtora moderninha qualquer. Conseguira a proeza de transformar um observatório abandonado, mal-condicionado, sujo e pequeno, num simpático e confortável lar, desde que você não se importasse com sofás e estantes disputando espaço com um telescópio soviético obsoleto, caleidoscópios artesanais e dormir coberto pelo céu. Laura saiu da cozinha arrastando as pantufas, sentou-se em frente a escrivaninha, ligou o velho Mac, acendeu a luminária em forma de lua. Digitou sua senha pessoal - disse um animado”bom dia”para o computador que inicializara. Workaholic incorrigível, amava-o, mas assim como o canto, a dança e a culinária, este era apenas mais um de seus amores não-correspondidos.
Seis horas depois Laura estava exausta e faminta. Ligou o celular – havia 4 chamadas não-respondidas e 2 mensagens na caixa postal. Ativou o viva-voz; Sara lhe parabenizara e dizia sentir saudades. Laura sorriu, discou alguns números, mas abortou a ligação. Se ligasse agora ouviria os sermões casuais dela:”Laura, o que você precisa é de um namorado! Há quanto não faz aquilo?” –“você sabe, né?!” – “aquele palavrão de 4 letras que os adultos geralmente fazem entre quatro paredes”. Sara diria tudo num tom debochado, recheado de metáforas pífias e ironia. A segunda mensagem era da mãe que implorava que ela voltasse logo – desejava felicidades e recomendava que se alimentasse direitinho.”Farei isso daqui a pouco, está bem?!” – Laura repetia em silêncio. Quando preparava-se para desligar o aparelho, notou que chegara uma nova mensagem de voz:”Laura, aqui é a mamãe outra vez. Esqueça esse computador, desligue a luminária e vá comer!” – “você não é uma planta; não realiza fotossíntese, entendeu?!”.”Beijos”: - JÁ ENTENDI, JÁ ENTENDI! – respondeu Laura exaltada. Laura então levantou-se, enrolou um cachecol xadrez no pescoço, pôs a touca; pegou a carteira no criado-mudo, calçou as botas pretas, desligou a luminária e colocou Mac para dormir no modo de espera. Caminhou até a bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros enferrujados.
CONTINUA...
sábado, 20 de outubro de 2007
SOMBRAS, SOBRAS E SOBRADO
sexta-feira, 19 de outubro de 2007
AURORA BORED
ADENDO - AGRADECIMENTOS, AFINS E FAST-FOOD LITERÁRIO*
Após conversar com uma amiga, conclui que escrevo post’s muito longos. Pensei que seria interessante criar alguns textos curtos, independentes e despretensiosos e, intercalá-los com meus contos tradicionais. Não pensem que sou influenciado por críticas, sou sensível, o que é bem diferente de fato. Além disso quantidade não significa qualidade. Muitas vezes o excesso de palavras corrompe a intenção do autor. Acredito que é preciso não apenas inventar, mas”reinventar-se”constantemente – subverter os padrões literário-linguísticos sem hesitação. É preciso ousar para criar. Intitulei estes post’s de fast-food literário*porque são textos rápidos, dinâmicos e de fácil apreciação. Espero que este seja o primeiro de uma série promissora. A fotografia é mais uma cortesia de meu estimado amigo, comandante e camponês, Naki – obrigado over and over:)
sábado, 13 de outubro de 2007
INCÓGNITA
"Só mais alguns metros, só mais alguns metros"Diasin repetia em silêncio enquanto atravessava o labirinto de escadas e corredores da antiga estação”Incógnita”. Após sete minutos incontáveis, Diasin enfim alcançou a plataforma de embarque. Observou apressadamente os arredores; não havia ninguém ou nada ali, exceto um banco de madeira velho e vermelho. O desgaste da tinta e a corrosão da madeira atingira um estágio irreversível. Quantas pessoas sentaram-se ali? Quantas esperaram minutos, horas, até dias por alguém? Quantas juras de amor incondicional àquele banco velho ouvira antes de ficar completamente surdo? Diasin imaginava quantas indagações sua imaginação ainda poderia conceber. Assim permaneceu, imóvel, por alguns instantes até voltar sua atenção para os trilhos desnivelados. Pareciam cansados de uma longa viagem. Passaram-se trinta minutos e Diasin permanecia estático – nada rompera aquele estado. Ele então enfiou a mão no bolso da calça, pegou algumas moedas sem valor da algibeira e, atirou-as lentamente nos trilhos. Ouvia atentamente o tilintar agudo da queda e bocejava durante o interim. O espetáculo já lhe entediara quando de repente, esgueirou seus olhos na direção do banco velho abandonado – ele não estava sozinho. Ajeitou os óculos com o dedo indicador e, incrédulo, constatou que havia mais alguém ali - uma figura demasiado peculiar por assim dizer. Tratava-se de uma jovem de estatura mediana, magra, cabelos curtos e negros, com duas pedras de ônix no lugar dos olhos, as pálpebras tingidas de âmbar; logo abaixo da esquerda havia um kanji saliente, impresso à nanquim provavelmente; tinha o nariz e os lábios finos e a pele alva como nuvens preguiçosas de um dia ensolarado. Um colar com um pingente na forma de adaga, o vestido negro até a altura dos joelhos, as luvas pretas de cetim, a meia-calça curiosamente desfiada e as sapatilhas num tom púrpura extravagante, lhe conferiam características exóticas e notáveis. Ela não estava sozinha. Um violino cuidadosamente envernizado dormia tranqüilamente em seu colo - o arco contava-lhe histórias até que adormecesse. Diasin fitava a figura da estranha jovem enquanto desconfiava dos próprios sentidos. Aquilo era surreal, pensava consigo. A jovem então levantou-se, pegou o violino pelo braço, caminhou lentamente na sua direção, aproximou-se o suficiente e, disse-lhe num tom de voz que oscilava entre o suave e agudo, que reconhecia o livro que ele carregava. Um livro repleto de mentiras bem-contadas e páginas devoradas por traças. Ela resolveu abruptamente indagar-lhe:
- Para onde vais cavalheiro?
- Para”Algum Lugar”minha gentil dama, entretanto, ainda não sei como chegar até acolá – o tom de voz de Diasin desapontaria um ouvinte mais sensível.
- Posso ajudar-lhe se quiser, afinal, meu destino fica pertinho daí – a jovem parecia convicta decerto.
- E poderia recusar uma oferta tão aprazível? – Diasin parecia satisfeito. A jovem sorriu por um instante e prosseguiu:
- De onde vens afinal?
- De algum lugar longínquo – os olhos de Diasin fitavam os próprios sapatos ao término da resposta.
- De fato tens coragem, pois viestes de tão longe e nem ao menos sabes para onde vais ! – a expressão de admiração desajeitada da jovem era digna de simpatia irrestrita.
- Não sei...Talvez seja apenas tolice – Diasin ansiava pelo trem como nunca agora.
- Tolices exigem uma grande dose de coragem – respondeu irresoluta a jovem.
Antes que houvesse tempo para a réplica(ainda que houvesse parecia impossível concebê-la)o diálogo foi interrompido pela chegada do trem. Diasin sentou-se ao lado da jovem e observou pela janela o banco velho enquanto abandonavam a antiga estação. Notou que esquecera alguma coisa. Deixara suas dúvidas ali.
17/12/1913
NOTA*: A garota, o violino e a estação existem de verdade. Como sei? Hmm...Digamos que eu estava acolá=)
ADENDO – AGRADECIMENTOS, AFINS E BATE-PAPO BALELA COM O AUTOR
Há uns 30, 40 ou 50(medidas quantitativas espaciais indefinidas –“incógnitas”)quilômetros de onde moro, existe uma antiga linha de trem abandonada. Imaginei que fotografar os trilhos dela seria o ideal – que eles expressariam a idéia de incerteza com relação ao futuro – que delineariam o conceito de Destino(Acaso)A atmosfera desolada do ambiente decerto tem um apelo estético irrefutável. No entanto, optei por esta fotografia, que pertence ao acervo de um amigo que mencionei no adendo de”Amantes e Opostos”. Eu, que a princípio imaginei trilhos enferrujados com o aspecto sépia ou em preto e branco, descobri que usá-la seria uma ótima oportunidade de abandonar, ao menos uma vez, todas as idéias preconcebidas que utilizo na construção de meus post’s. Gostei bastante do resultado. Trata-se de uma estória de época, o que causa um choque interessante entre imagem e texto – uma antítese pitoresca diria. Agradeço ao comandante(Naki), que apesar de estar acometido por uma crise temporária de”Parkinson”(vide a(in)definição da fotografia – hmm...Gosto do aspecto ocasionado casualmente rs), tirou uma fotografia, senão magnífica, digna de uma observação cuidadosa. Obrigado mais uma vez, caro amigo=]”THAT’S ALL FOLKS!”(sempre quis dizer isso!rsx)