domingo, 17 de fevereiro de 2008

SOBRE ANNA: Nuvens.

Após um silêncio que duraria segundos-luz, Anna disse pausadamente:

- Faz onze anos...Onze anos e meio senhora Handsome.

- Sei...Desculpe filha, quando chegares a esta idade verás que o tempo transforma a memória num quadro desbotado, pintado por um artista anônimo – a expressão de pesar no rosto da Sra.Handsome não dava margem há qualquer dúvida.

- Tchau senhora Handsome – Anna esforçou-se para parecer resoluta.

- Ah menina! Vais mesmo deixar o chá esfriar? – Anna respondeu com certa dificuldade:

- -Não dá...Prometo que um dia tomarei seu chá Sra.Handsome – para Anna prometer era auto-suficiente. O cumprimento da promessa era irrelevante.

- Que tipo de chá prefere querida? – disse a Sra.Handsome. Anna preferia café, mas parecia tão deselegante a idéia que, embora titubeando, resolveu enfim dizer:

- Quem sabe um de nimbos com gotas de orvalho? – a idéia fazia-lhe cócegas. Acenou abruptamente para a Sra.Handsome e partiu, deixando uma promessa que não conseguiria cumprir.

- Ah! – a Sra.Handsome fez um movimento brusco com a mão e continuou:

- Cuide-se e não esqueça de mandar lembranças a teu pai – depois acenou de maneira desajeitada, um tanto exagerada.

Caminhando com dificuldades a simpática velhinha afastou-se lentamente do parapeito, adentrou a cozinha e encheu uma pequena xícara de chá até a borda, despejou um pequeno pedaço de torrão de açúcar, dirigiu-se até a sala de estar, sentou-se numa poltrona carmim; degustou o chá em pequenos goles, suspirou, até que seus olhos cansados foram invadidos por lembranças: vozes, sons, cores, cheiros e sabores permeavam cada canto do cômodo agora. A visão de uma escrivaninha solitária continha a lembrança mais significativa.

Arthur Cloud era o arquétipo do amante ideal. Alto, demasiado belo e engraçado, não obstante alvo dos olhares lascivos das jovens da região, despertava suspiros onde houvesse uma jovem escrava das traquinagens de Eros. Ele sabia disso. No entanto, não parecia importar-se muito com o fato, uma vez que seus pensamentos estavam sempre voltados para a música e o céu; mais precisamente um pedacinho especial dele: as nuvens. Tocava violão numa época em que a palavra músico era sinônimo de vagabundagem, uma época não tão distante. Onde houvesse uma seresta, um coração apaixonado, algumas moedas e um pouco de vinho e gratidão, lá estava Arthur Cloud. Inclusive, foi numa dessas serestas madrugais que ele avistou por um instante o que duraria anos; o sorriso que conseguia realizar o impossível: enrubescer sua face dotada da dissimulação típica dos exímios galanteadores. A beleza da jovem Eugênia Handsome era capaz de transformar o mais selvagem dos lobos num cordeirinho domesticado. E assim aconteceu: Arthur Cloud conseguiu um emprego no correio, fez a barba, colocou o melhor paletó e chapéu que possuía e resolveu cortejá-la. Após muita insistência e uma infinidade de tolices cometidas, pois é sábio dizer que o amor transforma os homens em tolos e, tolos não sabem o que fazem – sabem apenas o que sentem, às vezes nada disso, Arthur Cloud conseguiu finalmente convencê-la à dar um passeio no cume de Anesthesia.
O lugar pareceu um tanto inóspito a princípio para Eugênia, embora tivessem uma visão privilegiada da cidadezinha. Arthur jurava que fora capaz de acertar os vitrais decorados com pássaros da paróquia, utilizando apenas uma pedra e um bodoque construído vulgarmente. Estória que se dispunha a contar para todos aqueles que quisessem ouvir. Acreditar nela não era necessário. Assim passaram-se algumas horas: Arthur vangloriando-se por feitos quixotescos e a bela Eugênia sentada na grama sorrindo. Quando o Sol já bocejava impaciente e entediado, Arthur de repente agachou-se, aproximou-se do rosto de Eugênia e quase sussurrando-lhe indagou:

- Já Mordestes uma nuvem, senhorita? – os olhos de Arthur pareciam maiores vistos daquela distância.

- Hã? – Eugênia não compreendia o que acabara de ouvir.

- Olhe para elas! Não parecem saborosas?! – Arthur parecia embriagado pelas próprias exclamações – Ali! Olhe! – insistiu.

Eugênia inclinou o pescoço para olhá-las quando foi surpreendida por um beijo. Ela hesitou, seus músculos se enrijeceram, o coração palpitou, mas logo uma sensação de torpor agradável invadiu seu corpo. O que era aquilo afinal? De fato, as nuvens tinham sabor. Um sabor que imitava essências de nimbos e saliva fielmente. O corpo dela desfaleceu por um instante, Arthur Cloud então passou as mãos grandes e calejadas nos cabelos da jovem e retirou pequenas pétalas de Dente-de-Leão que insistiam em se alojar ali. Logo, o corpo pesado de Arthur encontrava-se do lado do corpo delicado e leve de Eugênia. As nuvens foram se distanciando do céu e os dois ali ficaram, deitados, enquanto seus corpos entrelaçavam-se refletindo abóbodas coloridas: uma azul a princípio, logo depois laranja e, por fim uma com contornos de um roxo crepuscular imponente. Depois daquele dia não é difícil imaginar o que aconteceu. Arthur Cloud casou-se com Eugênia Handsome, contrariando a vontade do pai da jovem que lamentava-se pelo dote ínfimo, e a custo de muitas horas extras conseguiu realizar o sonho da esposa: comprou uma casinha com um jardim improvisado repleto de girassóis e assim os dois viveram felizes para sempre. Bom, pelo menos enquanto durou os cinqüenta e sete invernos e incontáveis primaveras de suas vidas. Não tiveram filhos. Um desgosto para o pai da jovem que ansiava por um varão: desejava ensiná-lo a pescar - tudo que aprendera; ter de volta os anos que a vida lhe roubara. A paixão que sentiam naturalmente arrefeceu com o tempo; deu lugar a outro sentimento. Um sentimento que sobrepujava qualquer outro que já sentiram.
Numa manhã do quinqüagésimo sétimo inverno encontraram o corpo de Arthur Cloud inerte. Os olhos fixos em algum ponto longínquo do céu, deitado na neve, o rosto pálido esboçava um sorriso intrigante. Não haviam sinais de violência – aparentemente seu coração velho enfim se cansara. Eugênia não chorou durante o velório e o cortejo fúnebre inteiro do marido, embora o abatimento em seu rosto lutasse bravamente contra isso. O silêncio abafava o som do sofrimento; não silenciava-o. Nada o faria. Durante uma semana não apareceu uma única nuvem no céu de Anesthesia. Eugênia decidiu que preservaria a memória do marido. Assim fizera: nada foi modificado desde aquele dia; a escrivaninha, a fotografia de Eugênia vestida de noiva no centro dela, a estante cheia de livros referentes a aviação e alguns contos de autores obscuros, o violão velho empenado com as cordas enferrujadas, além do chapéu e a cigarreira que ele costumava usar - a mesma que Eugênia odiava – culpava-a por levá-lo embora. Este talvez fosse o único dos vícios que Arthur Cloud não conseguiu abandonar. Eugênia Handsome tinha uma força sobre-humana diziam os amigos mais próximos do casal. Embora não houvesse um único ano, mês e dia, que Eugênia Handsome não pensasse nele enquanto olhava abobada a abóboda matinal pelo parapeito do sobrado. Esta saudade, este aperto no coração vazio que sentia, pelo nome de Amor atendia.

A Sra.Handsome ainda atordoada pelas lembranças levantou-se apressadamente, tropeçando alcançou um corredor vazio; estava muito escuro e não havia qualquer vestígio de uma luz alentadora. Ainda tropeçando tateou as paredes e constatou que havia alguma coisa dependurada nelas. Apoiou-se numa delas e ficou ali alguns instantes. Ofegava, o coração batia descompassadamente. Sentiu o cheiro de rosas e procurou acalmar-se. Logo uma luz tímida iluminou o corredor revelando uma galeria de quadros antigos. A Sra.Handsome notou que estava presente em todas as pinturas. Na mais antiga carregava um balão no formato de um coração azul. Parecia feliz. Fora feliz de fato. Olhou para eles extasiada e no instante seguinte ouviu um ruído. Havia mais alguém no corredor: ”Como?” - Eugênia Hansome indagava-se. Caminhou alguns passos até avistar uma garotinha sorridente carregando um balão no formato de um coração azul. A garotinha acenou brevemente e lhe disse alguma coisa inaudível. Esforçando-se ao limite a Sra.Handsome seguiu-a até chegarem a um túnel. Ela então olhou à sua volta, pegou na mão da garotinha, e seguiram adiante. Não havia uma luz no fim dele.