sábado, 27 de junho de 2009

MUITO LONGE DE BELÉM

Ele sobrevivera a mais um natal, já se dava por satisfeito. Não houve a comoção familiar que tanto temera durante os dias que precederam a data. Exceto pelo fato de ter sido coagido a dar um presente de natal para alguém, não teve maiores contratempos - é, ele teve que presentear a sobrinha graças aos pedidos insistentes e incisivos da avó, uma mulher que fazia horas extras como sua mãe. Como não fazia idéia do que se dava a um bebê do sexo feminino, deixou que sua mãe escolhesse por conta própria - ela escolheu um vestido multicolorido; exibiu com orgulho para todos, anunciando que era um presente especialmente dado pelo filho. Ele teve que encarar os olhares desconfiados( dele?!) e constrangedores à sua volta. "Ela tinha que escolher um vestidinho cheio de cores espalhafatosas?". Se ao menos fosse um pretinho básico...Ahhh o que estava pensando?. Não acreditava em espírito natalino. Mas todas as madrugadas do dia 25, pouco depois do dia 24 colocar o casaco cinza e voltar para casa, os fantasmas de natais passados lhe visitavam.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

MODUS OPERANDI

Quinta-feira, durante uma dessas tempestades de fim de tarde que anunciam a chegada da época mais desagradável do ano(vulgo Verão), caiu um raio perto, muito perto da casa dele. Ele ouviu um estrondo, seu martelo vibrou, estremeceu, e um cheiro forte de fuligem entupiu suas narinas. Ele estava no computador, imagino que vocês tenham idéia do que aconteceu: isso mesmo, o cheiro ruim vinha do computador. O computador travou instantâneamente e atortoado ele teve que desligá-lo, pois o PC não respondia, coisa que já se acostumara depois de um relacionamento longo e conturbado. Assim que o religou e tentou reconectá-lo a internet, seu receio se tornou uma realidade: o discador não funcionava, embora a linha telefônica estivesse ativa e o diagnóstico do modem fosse positivo. Ele já pressentia, sabia, o modem queimara - a autópsia que realizou a posteriori indicava que o modem sofrera uma sobrecarga elétrica. Ele ficou muito preocupado a princípio, por pouco não atravessou a fronteira e entrou nos limites do Desespero, mas sua frieza e racionalidade, toda domesticidade aprendida ao longo dos anos o impediram de seguir em frente. Ele ligou para um amigo perito em informática que lhe devia dinheiro, favores, algumas bebidas e umas doses de consideração. Explicou o problema e ouviu os risos e deboches típicos dele antes de prontificar-se a lhe dar um auxílio técnico. Ficaram mais de meia hora no telefone, enquanto ele desmontava seu PC inteirinho seguindo as recomendações do amigo na linha. Não conseguiu remover o modem danificado, a plaquinha moribunda, por falta de ferramentas apropriadas - mas divertira-se bastante dissecando o Longínquo(esse era o nome do PC - ele gostava de nomear coisas inanimadas) Seu amigo prometeu que viria olhá-lo pessoalmente - disse que viria devidamente acompanhado das ferramentas apropriadas e um modem reserva, que segundo ele talvez estivesse em condições de uso. Se não desse certo, ele estaria encrencado mais uma vez: teria que desembolsar uma grana razoável, se submeter aos preços extorsivos praticados pelas duas únicas lojas de informática da cidade, correr atrás de manutenção especializada, além de prolongar seu recesso virtual temporário. O monitor do PC estava se comportando de uma maneira estranha ultimamente - ele sentia que o monitor parecia meio abatido, quiça desmagnetizado. O mês de Agosto trouxera as bruxas mais cedo.

sábado, 6 de junho de 2009

ITINERANTES

Era cada vez mais emocionante viajar com o serviço de transportes metropolitano paulista - ônibus lotados, figuras incomuns em um meio comum. Sobrava calor, desodorantes vencidos, bêbados, fanfarrões, mulheres obesas, fracassados de todos os tipos e gêneros. Ele procurava coisas singulares nos coletivos. Não era tão fácil. Entretanto, tinha duas oportunidades durante a semana. Na última vez encontrara um sujeito curioso: ele usava um daqueles óculos escuros vendidos a preços módicos em camelôs, trajes de surfista suburbano e o cabelo devidamente desgrenhado com gel sem álcool na fórmula. O cara sentara-se ao seu lado e, enquanto ele olhava para o lado de fora da janela procurando alguma coisa que afastasse o marasmo das pálpebras, o vizinho indesejado parecia hibernar. Logo sentiu algo pesar sobre seu ombro - o cara usava o braço para se apoiar nele! Ele pensou consigo:"se este cara tentar colocar a cabeça no meu ombro darei-lhe uma cotovelada" - reunindo toda força que sua discrição e educação habituais suprimiam. Parece que o estranho ouvira seus pensamentos. Se recompôs em seguida. Ele evitaria se sentar nos assentos de ônibus, mas isto só aumentaria as chances de lhe molestarem sexualmente, imaginava - os ônibus viviam lotados, era mão daqui mão dali, ninguém sabia explicar de onde tantas mãos vinham. Elas desrespeitavam as fronteiras das terras mais baixas, evadiam as estrangeiras, transformavam uma simples viagem numa ferrenha batalha pela integridade sexual.