domingo, 28 de outubro de 2007

O PRESENTE DE SATURNO

36...432...1.728...13.356...315.576...18.934.560...Hmm...1.136.073.600. Enrolada numa toalha Laura resolvia cálculos no espelho embaçado do banheiro. Os lábios roxos e murchos, acompanhavam o ritmo frenético do dedo indicador direito. Os olhos, fixos, pareciam fora de órbita. Laura abaixou a cabeça, ofegou, expirou vapor na parte inferior do espelho e rapidamente traçou uma linha reta – abaixo dela escreveu o resultado em algarismos romanos. Laura comemorava trinta e seis janeiros naquela manhã de agosto. Assim que concluiu com êxito a eqüação, saiu do banheiro, desviou dos objetos vindos de um planetário espalhados pela sala - trancou-se no quarto. Precisava aquecer-se. A noite passada fizera 3 graus, a água por pouco não congelara nos canos – Laura sentiu frio, muito frio, sua alma encolheu-se e o quarto transformou-se numa verdadeira câmara frigorífica. O inverno tingira de branco a paisagem, obrigara-na a abrir o guarda-roupa, violara seus domínios; sentava-se ao lado dela na lareira ou na mesa durante o café da manhã. Como ela o odiava! Ele sempre lhe trazia lembranças; um sabe-sei-lá-o-quê que a devorava por dentro. O aniversário reforçava esta sensação. Laura secou os cabelos curtos tingidos de vermelho, pôs a calça pesada, duas malhas e uma blusa de lã verde; colocou as meias sujas de cera amarela e calçou as pantufas de urso. Ajeitou os óculos. Viu que o rádio-relógio apontava 8:15. Não conteve sua irritação, foi até a janela e esbravejou: - SOL?! É, VOCÊ MESMO SEU PREGUIÇOSO! Já está na hora de acordar, não acha?! – tentava ser diplomática. Uma luz frágil que entrava pelas frestas da janela foi a única resposta que obteve. De repente, pensou em como chegara até ali – viera montada em seus sonhos. Laura estava sozinha num observatório precário, numa terra desconhecida, fazia frio e não restara uma única barra de chocolate. Ela ainda podia se lembrar do dia em que pediu ao pai uma luneta de presente de aniversário – faria doze anos naquele dia. O pai riu, disse que uma bicicleta nova seria mais conveniente para uma mocinha. Fizera questão de ressaltar o”mocinha”. Na data marcada uma bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros brilhantes, a esperava na garagem. Emburrada, agradeceu pelo presente e voltou para o quarto sem jantar. Dias depois, às escondidas, vendeu a bicicleta e comprou uma luneta pela metade do preço numa loja de antigüidades. Desde então a garotinha passava as noites em claro, observando a imensidão escura do céu, as estrelas de plantão; nomeando as constelações e povoando outros planetas com a imaginação. Se o pai perguntasse pela bicicleta, usaria o que aprendera nas aulas extra-curriculares do colégio. Encenaria uma tragédia grega onde garotinhas são vítimas de roubo, coerção física e Hércules chega atrasado. As garotas da sua idade sonhavam em ser veterinárias, médicas, advogadas, atrizes, estrelas da música pop(clones da Madonna ou vice-versa), enquanto as menos abastadas bastava uma casa com garagem, piscina e cerquinha branca – isso atendia satisfatoriamente suas necessidades burguesas. O gosto pela astronomia, assim como seu visual(Laura parecia uma hippie e era pelo menos 10 centímetros mais alta que as colegas de classe), despertavam inveja e chacotas rotineiras. Apelidaram-na de”Miss Rocket”. Era comum vê-la sendo indagada pelos colegas quando atrasava-se:”Não veio de foguete hoje?”O que foi?”Acabou o combustível?” – as indagações vinham acompanhadas de sonoras gargalhadas. Laura não reagia. Ouvia calada a tudo e a todos, pois esperava que se cansassem um dia. Até esse dia ninguém souber dizer onde acabava a tristeza, onde começava a garota. Foram anos difíceis, mas ela sobreviveu a tudo aquilo. Todavia esquecer, não esquecera, não pudera afinal. Não demorou até que se tornasse a primeira garota a ganhar o prêmio anual de física – concedido apenas aos melhores alunos e professores por sua colaboração e dedicação a ciência. Laura prestaria o exame para física, entretanto, os discursos inflamados do pai, desembargador aposentado, fizeram-na desistir do sonho de infância e escolher o curso de direito. Laura formou-se em direito, mas depois de ocupar durante três anos a cadeira macia e confortável de um escritório, cansou-se das cláusulas, tribunais, causas e ações e o latim vulgar dos colegas de profissão. Rescindiu seu contrato com o Diabo. Afinal, estava insatisfeita por excelência. Colocou seus pertences numa caixa de papelão, preservando o diploma moldado, o porta-retrato da formatura e a caneca de estimação decorada com estrelas. A lordose e úlcera que adquirira pegaram carona. Laura inscreveu-se no exame de uma das mais conceituadas universidades do mundo. Falhou vergonhosamente nas duas primeiras vezes. Na terceira vez por um ponto, um mísero ponto, não conseguira realizar o sonho, provando o gosto amargo do”quase”e, o quão pouco pode ser muito às vezes. Ingressou na universidade na quarta tentativa, sob os protestos do pai, a angústia da mãe, a desconfiança de amigos e a certeza do que queria.”A astronomia é o caminho mais curto para as estrelas” – disse orgulhosa e confiante no encerramento do discurso de admissão.

Laura despertou pela segunda vez, dirigiu-se a cozinha e estupefata, constatou que alguma coisa peluda fizera uma festa sem convidá-la. Antes que percebesse um extenso”putz”saltou da sua boca até a mesa – mordiscou os lábios censurando-os. A caixa de cereais roída, derramada sobre a mesa, não deixava dúvidas: ele voltara. Ela comprara algumas armadilhas para ratos, porém o fabricante não se responsabilizava pelo uso indevido, afinal, furões não são ratos, embora pertençam a mesma família. Laura bufou, pegou a pá perto da pia e com a ajuda de um pano, apagou os vestígios da travessura noturna. Vasculhou o armário, fogão e a geladeira em busca de algo prático, instantâneo e comestível – era adepta do”não faça, compre feito”. Não sobrara nada. A cidadezinha mais próxima ficava há uns 40 minutos de bicicleta, no entanto ela estava às voltas com a entrega de um relatório. Tinha um prazo apertadíssimo e as cobranças do instituto nacional de pesquisas espaciais. Caso cortassem sua verba, Laura já decidira o que fazer: venderia a idéia de casa-observatório para uma construtora moderninha qualquer. Conseguira a proeza de transformar um observatório abandonado, mal-condicionado, sujo e pequeno, num simpático e confortável lar, desde que você não se importasse com sofás e estantes disputando espaço com um telescópio soviético obsoleto, caleidoscópios artesanais e dormir coberto pelo céu. Laura saiu da cozinha arrastando as pantufas, sentou-se em frente a escrivaninha, ligou o velho Mac, acendeu a luminária em forma de lua. Digitou sua senha pessoal - disse um animado”bom dia”para o computador que inicializara. Workaholic incorrigível, amava-o, mas assim como o canto, a dança e a culinária, este era apenas mais um de seus amores não-correspondidos.

Seis horas depois Laura estava exausta e faminta. Ligou o celular – havia 4 chamadas não-respondidas e 2 mensagens na caixa postal. Ativou o viva-voz; Sara lhe parabenizara e dizia sentir saudades. Laura sorriu, discou alguns números, mas abortou a ligação. Se ligasse agora ouviria os sermões casuais dela:”Laura, o que você precisa é de um namorado! Há quanto não faz aquilo?” –“você sabe, né?!” – “aquele palavrão de 4 letras que os adultos geralmente fazem entre quatro paredes”. Sara diria tudo num tom debochado, recheado de metáforas pífias e ironia. A segunda mensagem era da mãe que implorava que ela voltasse logo – desejava felicidades e recomendava que se alimentasse direitinho.”Farei isso daqui a pouco, está bem?!” – Laura repetia em silêncio. Quando preparava-se para desligar o aparelho, notou que chegara uma nova mensagem de voz:”Laura, aqui é a mamãe outra vez. Esqueça esse computador, desligue a luminária e vá comer!” – “você não é uma planta; não realiza fotossíntese, entendeu?!”.”Beijos”: - JÁ ENTENDI, JÁ ENTENDI! – respondeu Laura exaltada. Laura então levantou-se, enrolou um cachecol xadrez no pescoço, pôs a touca; pegou a carteira no criado-mudo, calçou as botas pretas, desligou a luminária e colocou Mac para dormir no modo de espera. Caminhou até a bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros enferrujados.

CONTINUA...