domingo, 21 de setembro de 2008

SOBRE ANNA: Fim do Mundo

Anna descobriu isso numa manhã. Era sexta-feira, 14 de junho de 1979. Mãos grandes e ásperas pesavam sobre seus ombros. Fazia um frio insuportável. Chovera muito algumas horas atrás.”Quando as pessoas morrem um anjo desce do céu e as leva para lá, Anna”, seu pai dizia-lhe com uma expressão apática e sombria. E ao ser perguntado por que sua esposa não acordava, repetia:”Ela está dormindo agora querida “– “foi para um lugar muito, muito distante daqui” – “não se preocupe, o papai está aqui“– “está tudo bem” – em seguida acariciava os cabelos e a testa da garotinha carinhosamente. Anna gritava, chorava, mas a mãe não acordava. Homens vestidos de preto revolviam a terra úmida com pás, jogavam-na sobre a cova recém-aberta. Mentiram para ela. Ela sabia. Sempre mentiam. Nada fazia sentido para Anna agora. Nem aquela coisinha chamada Vida. Pessoas morriam. A Vida era uma garotinha frágil no final das contas. As últimas palavras da mãe ressoavam como um estampido na sua cabeça:

- Não se preocupe querida...É apenas água salgada – dizia a mãe de Anna enquanto enxugava os olhos úmidos num lenço branco. Anna olhou para ela e indagou:

- Ué...Cadê o mar mamãe?

- Está aqui querida – a mãe de Anna colocou o dedo fura-bolos direito na íris esquerda azulada da garotinha, fez um movimento leve para baixo, tocou a pálpebra retirando um cisco e sussurrou no seu ouvido:

- Aqui fica a praia. Querida quero que me prometa uma coisa: você vai construir castelos de areia, está bem? – soluçou, sorriu sem graça e abraçou-lhe fortemente. Anna sentia um aperto – e o abraço não era o único responsável. Anna não esqueceria.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

SOBRE ANNA: Fim do Mundo(Prelúdio)

Anna pegou o último chiclete que sobrara na bolsa. Não podia desperdiçá-lo. Usaria-o com cautela. Dividiu-o em duas metades ligeiramente iguais, levou uma delas à boca e mascou lentamente, deixando que a goma tingisse sua língua de violeta. O gosto doce aliviava a tensão. A intensidade do efeito era irregular. Podia durar horas ou apenas alguns minutos. Anna não estava com sorte. Levantou-se e voltou a caminhar. O pátio do colégio lhe esperava uns 120 metros adiante. Os passos desritmados dela produziam um som desagradável, cacofônico e irritante. A sola do coturno estava seriamente comprometida. As pernas cansadas, formigando, imploravam por um descanso. Anna carregava o peso das pequenas coisas – coisinhas que significavam muito para ela. Passou por uma amarelinha tomando cuidado para não pisar no inferno. Os ecos dos passos desapareciam pouco a pouco, juntando-se às escadarias e um corredor amplo que levaria-lhe ao seu destino. Estava muito perto agora. Parou em frente um muro que continha frases subversivas escritas com spray vermelho barato, desenhos, marcas e corações de casais apaixonados. Tinha que estar ali. Anna não lembrava direito o que procurava com tanto afinco. Procurava qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Abaixou a cabeça, fechou os olhos, beijou o pingente do colar, lembrou-se da mãe. Ela lhe dera o colar assim que Anna completou sete anos de idade. Dizia que ele tinha uma história:”Tudo tem uma história Anna” – “não se esqueça” – não cansava-se de afirmar. Esta era antiga. Anna o carregava para onde quer que fosse. O pingente do colar tinha a forma de uma bola de gude. No interior dele havia uma substância, um líquido viscoso que conservava uma mariposa cinzenta morta. A aparência bizarra do colar levantava suspeitas sobre sua procedência. Anna gostava de mariposas – mariposas são legais, dizia. O fato dela não estar viva não lhe incomodava. Embora mariposas e insetos em geral possuíssem um defeito imperdoável. Geralmente tais criaturas morriam queimadas de maneira estúpida em alguma fogueira. Nasciam, viviam, morriam de maneira estúpida. Não eram muito diferentes dos humanos, Anna pensava. A Vida era cheia de encanto, mariposas e insetos – não na mesma proporção decerto. Mariposas simbolizavam o fim inevitável das coisas.