domingo, 21 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Guerrilha(Sucrilhos)

Não negocio com terroristas, dizia para Nah. Durante o café da manhã, enquanto Nah insistia em extrair mais algumas gotas de ketchup do frasco enrugado, Teresa repetia o de praxe:

- Já arrumou aquela bagunça, querida? Não me venha com guerrilhas fantasiosas outra vez, certo?

- Já vou... - Nah respondia bocejando, olhando para os lados à procura de uma saída de emergência. Todavia, sua mãe tratava de mantê-las fechadas.

- Termine de comer e vá. Já se passaram cinco minutos, sabia?

- Não posso – Nah dizia.

- A Nah de cinco minutos atrás não existe mais. Mortos saldam suas dívidas Dona Teresa - Nah ria. Aprendera um pouco de retórica nas apostilas de filosofia do cursinho.

- Bom, então espero que a nova Nah saiba lavar a louça e passar a roupa – Teresa dizia lentamente, saboreando cada sílaba.

- Quando minha mãe virou a madrasta má?! - dizia estupefata, Nah. Teresa colocava os óculos escuros, pegava a bolsa, virava-se de costas e, acenando dizia:

- Te vejo mais tarde...Tenha um bom dia Cinderela – pendurava avisos na porta do banheiro, da geladeira e do quarto de Nah antes de ir para o trabalho.

sábado, 13 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Nostalgia com Waffles.

O acontecimento despertara o interesse da Nostalgia: Nah lembrou-se da mãe que sempre lhe repreendia por falar com estranhos. A mãe continuava a lhe repreender, pregar-lhe sermões com um martelo enferrujado, entretanto, usava meios mais ortodoxos que as broncas e puxões de orelha da infância. A mãe de Nah não se conformava com as escolhas da filha. Nah saira de casa dois meses atrás e não voltara - não ligava, tampouco retornava as ligações, enviava cartas ou e-mails. Nah chamava de independência o que sua mãe chamada Teresa, chamava de Imprudência. O pai de Nah se separara de sua mãe muito cedo, quando ela tinha apenas seis anos de idade. A mãe de Nah aceitou o divórcio sem relutância, já que a relação desgastara-se bastante e, incomodava-lhe a presença dos pés frios de um estranho em seus lençóis. Ironizava a situação nos jogos de cartas de sexta-feira à noite. Dizia para as amigas que não precisava de vibradores orgânicos. Teresa as convencia de que estava certa e o melhor que faziam, era continuar jogando cartas ao invés do jogo da Verdade. Nesse jogo Teresa sempre perdia. E Teresa odiava perder. Preferia enfrentar o azar no pôquer, as risadas altas e as provocações, o curinga resenhado, os ases, ouros, espadas, pedras e paus, truques e trapaças de Verônika, vizinha e convidada em casos de emergência; quando nem toda lista telefônica podia resolver. Verônika era a substituta natural de Irene, sua irmã gêmea, quando Irene se encontrava perdida e indisposta, flertando com a Depressão no fundo de um poço escuro 4x4. Irene era negra, muito alta, tinha 1, 86 centímetros de altura e aspirações, tornozelos bem torneados, olhos cor de mel e uma voz que encantava e intimidava homens e mulheres em proporções. Ela estudava canto lírico desde os oito anos, mas como faltavam óperas na região, ganhava aplausos e a vida em clubes noturnos de soul e jazz da cidade. Verônika era meio centímetro mais alta, um minuto mais nova e discutia relacionamentos com estranhos no elevador. Morava no terceiro andar do edifício, dois acima da irmã mais velha. Nah considerava-lhe sua tia adotiva favorita. Verônika ensinara Nah a tocar violão e se maquiar. Também lhe ensinou alguns palavrões, a calcular e a desenhar dragões. Não tivera tempo de ensiná-la a jogar pôquer. Lamentava-se por isso. Coube a mãe de Nah ensiná-la a mastigar direito a comida, escovar os dentes, fazer waffles e panquecas de queijo e que óculos escuros e protetores solares são indispensáveis. E que não adiantava, a existência de duendes revolucionários no colchão, um pretexto com o aval da Preguiça, não funcionaria outra vez – Nah teria que arrumar o quarto ou sofreria com castigos e sanções severas. Citações do estatuto de defesa dos direitos da criança e adolescente, acusações de fascismo, greves de fome nem ameaças de atentados aos bons costumes, comoviam, convenciam Teresa de que ela precisava ser mais flexível com a filha.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ

Nah sentou-se nos fundos do vagão, num assento reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes, passageiros com crianças no colo e, extraordinariamente "pessoas socialmente indispostas". Nah tramava uma maneira de tornar sua conduta legalmente aceita - seus olhos vagavam pelo vagão, enquanto imaginava sua licença usurpada ilustrada ao lado das demais. Nah tinha fobia social. Parecia bastante satisfeita hoje, afinal, havia apenas cinco pessoas naquele vagão. Um milagre parecido só feriados prolongados e os minutos finais do fim do dia poderiam proporcionar. Um homem de meia-idade, calvo, com um jornal aberto, sentava-se do lado oposto de Nah. Folheava o caderno de negócios apressadamente. Nah espiava o verso do jornal, assim que o homem dobrava as páginas. Ela tentava entreter os olhos inchados. Gastara o último frasco de colírio, poucas horas antes, durante uma crise repentina de renite. O caderno de negócios não fica longe das palavras cruzadas, imaginava. Bastava um pouco de paciência e, logo, logo estaria testando todo conhecimento que adquirira no Google. No entanto, o homem deteve-se numa página, observou cuidadosamente os índices da bolsa de valores e, deixando um "tsc" escapulir entre o vão dos dentes cerrados, fechou o jornal. Nah perdera a última chance de matar o tempo sem sujar as mãos. Abriu a bolsa, pegou o lápis de olho, desenhou algumas estrelas nas unhas da mão direita. Poucos instantes depois, após apagar o esboço de um coração no dedo anular, Nah adicionou uma lua minguante à estrela solitária do polegar direito. Assim que se virou, notou os olhares de uma garotinha sentada do lado esquerdo do vagão. A garotinha sentava-se do lado da mãe, cujos sentidos oscilavam – ela cochilava indiferente aos avisos de desembarque. A garotinha olhava para Nah, abraçando com força, o que Nah imaginava ser um pingüim de pelúcia azul. A mãe da garotinha nos breves instantes de consciência retocava a maquiagem com a ajuda da janela, retirava o excesso de batom vermelho com um lenço de papel, ajustava a saia curta, justa e vermelha e calçava parcialmente os sapatos de salto alto. Para Nah existia algum tipo de elegância marginal nos modos da mulher; uma vulgaridade sublimada pela graça dos movimentos. Os olhos fundos denunciavam o descaso da mulher com o sono. Nah guardou o lápis de olho, pegou uma barra de cereais e, depois de constatar que o homem de meia-idade já guardara o jornal numa pasta de couro preta, ofereceu timidamente a barra para a garotinha. A garotinha abaixou a cabeça, moveu-a de um lado para o outro, rejeitando a oferta. Nah insistiu gesticulando; esforçava-se para que sua mímica semi-analfabeta fosse compreendida pela criança de 09 anos de idade. A garotinha riu ao ver os gestos tresloucados de Nah; colocou a mão direita nas costas do pingüim de pelúcia, fez alguns movimentos, doravante mexeu o bico dele, revelando um boneco ventríloquo, que até então ocultava. Depois cochichou alguma coisa no ouvido do boneco, abaixou a cabeça e falou, baixinho, com movimentos minuciosamente minúsculos da boca: - Mamãe me disse para não falar com estranhos. Nah pensou, titubeou, pegou o lápis de olho de volta, riscou um balão de diálogo num lenço de papel branco com a frase: “Entendo... Mas e seu amigo?”. Não fala com estranhos também?”. Em seguida pegou outro lenço, escreveu entre parênteses” Ou é tímido demais?”, em letras garrafais. Nah e a garotinha riram. Nah trocara a ordem das mensagens acidentalmente. A garotinha respondeu usando o pingüim como porta-voz: - Falo, mas hoje tô doente... Preciso descansar – fazendo uma expressão triste com o rosto do boneco. A cara dele contrastava com a voz fanha e engraçada que a garotinha usava. Nah então percebeu que havia um termômetro colado com um band-aid, bem debaixo de uma das asas do pingüim. Conteve-se para não rir. Ponderou um instante:” não é nada fácil a vida dessas criaturas nos trópicos “. O dia estava muito quente mais uma vez, no entanto Nah ainda parecia incrédula: recusava-se a acreditar que pingüins de pelúcia sofriam de insolação. Talvez alguns dias numa geladeira confortável fariam bem, divagava. De repente, após uma nova mensagem de desembarque, a mãe da garotinha acordou assustada. Refeita do susto, um devaneio ruim, colocou a mão no rosto da garotinha, alisou-o por um instante e a abraçou com força, amassando o bico do pingüim de pelúcia e amarrotando o vestido rosa da filha. Levantou-se, pegou a filha pela mão e saíram pela porta recém-aberta. A garotinha despediu-se de Nah sorrindo, exibindo as janelas da casa de cálcio( o pagamento das fadas estava em dia), fazendo movimentos com uma asa e o bico amassado do pingüim.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

24 de SETEMBRO

Enquanto voltávamos ao percurso habitual, trombamos com a tia dele por acaso(mundo congestionado!); uma senhora simpatisíssima diga-se de passagem, que nos ofereceu comida(segundo ela uma sopa deliciosa nos aguardava se aceitássemos) - recusamos, ela insistiu, pediu que comêssemos um lanche, tomássemos uma vitamina pelo menos, mas não mudamos de idéia. Estávamos cansados, abatidos, o entusiasmo perdera-se em alguma esquina lá atrás. Visitamos um cinema que a simpática tia de meu comparsa indicou, mas a próxima sessão demoraria umas duas horas e não tínhamos disposição pra uma sequer. Nos despedimos da simpática senhora que mais parecia uma avó saída de algum conto infantil, daquelas que fazem bolinhos de chuva e contam histórias pros netos, tamanha a afabilidade. Caminhamos cerca de meia-hora, até lembrarmos da recomendação dada pela simpática senhora(acredite, mesmo que eu soubesse o nome dela, ele não a descreveria melhor): ela nos mostrou um ponto e o horário onde poderíamos pegar um ônibus que nos levaria direto pra casa, sem rodeios e baldeações. Não conversamos muito na volta, estávamos imersos em nossos próprios mundos particulares; ouvíamos música, de vez em quando ríamos sozinhos, nada digno de mais um parágrafo . Meu comparsa sugeriu que eu fosse a casa dele ainda, tomar alguma coisa, esticar a conversa, mas eu só pensava em esticar minhas pernas - recusei a oferta, nos despedimos e sabíamos que cada um trazia na mochila mais do que embalagens de barras de cereais e uma garrafa de água vazia.

sábado, 8 de novembro de 2008

24 X

Desistimos e voltamos a caminhar. Se ao menos tivéssemos lancheiras, teríamos alguns sanduíches de mortadela(atum em dias melhores) Ríamos da idéia de uma excursão escolar frustrada - o ânimo definhava, mas restava-nos uma fatia de humor. Vimos um cemitério enorme, parecia uma cidadezinha de mortos e, embora pareça bizarro, o lugar era muito bonito. Tumbas, câmaras mortuárias, criptas, lápides, jazigos, capelinhas e todo tipo de arquitetura gótica e renascentista, às vezes com inscrições em latim(a língua dos mortos), dividiam espaço com ipês amarelos e roxos. Me perguntava como seria sugestivo o nome das localidades ali: rua das Lamentações, esquina da Redenção, alameda dos Anjos, bairro dos apóstolos e uma infinidade de bobagens iam-vinham-iam à minha cabeça. O que nos impressionava era o tamanho do cemitério - nos perdíamos na vastidão dele. Entramos pelo portão dos fundos, suponho que não há ou havia um vigia. A tranqüilidade que senti naquele lugar é indescritível. Olhávamos, fotográfavamos, imaginei se as fotos revelariam alguma manifestação espiritual/ ectoplásmica, contudo percebi que isso não passava de um roteiro de filme B tailandês - até arrisquei algumas notas no violão, depois de olhar a minha volta e perguntar com os olhos pro meu amigo se "eles se importariam". Vi gatos, muitos deles, formavam um tipo de gangue e nos observavam curiosos a distância. Fotografei alguns, não era fácil, eles fugiam quando me aproximava - imagino que não gostem de paparazzos. Havia algumas folhas secas(pedaços de Outono)em cima de alguns túmulos; imagens de santos e santas, esculturas, o tradicional Cristo sôfrego, flores de todas as cores, cheiros e preços, retratos antigos em sépia ou preto e branco que mostravam homens de bigode, terno e gravata, mulheres com penteados de época, algumas bonitas, outras nem tanto; algumas, raras de fato, exibiam a natureza artística impressa no rosto(talvez fossem cantoras de rádio, atrizes de tv e cinema, poetisas, pintoras, não sei) Muitas morreram jovens, na aurora da vida, o epitáfio me dizia. Havia imigrantes europeus, japoneses, cogitei a hipótese de um Yakuza estar enterrado no meio deles. Procurei famílias com meu sobrenome, não achei nenhuma, quem sabe com um pouco mais de esforço. Quando nos preparávamos pra voltar para casa, meu comparsa avistou uma jovem muito bonita: ela tinha a pele alva, usava óculos escuros, uma blusa preta e calça preta, um coturno preto e uma bolsa cinza coala. Meu comparsa se apaixonou instantaneamente pela gótica - deve ser a primavera, ele fica muito suscetível nessa época do ano. Ele falou bastante dela enquanto voltávamos, fez planos, ensaiou encontros imaginários, escolheu o nome dos filhos que teriam juntos, etc.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

24 [3]

Prosseguimos a viagem a pé e a passos. Ele me mostrou um mapa que imprimira um dia antes, tive que confiar nos dotes ocultos de navegador dele, não tinha opção, tampouco fazia alguma idéia de onde e quando chegaríamos. Percorremos um bairro nobre de São Paulo, uma parte da cidade que deu certo: construções bonitas, ruas arborizadas, algumas com árvores de caules imensos; pareciam sequóias africanas, calçadas limpas, um lugarzinho bem agradável de se ver. Encontramos um senhor, um verdadeiro trovador, que bradava com um jornal em mãos que a polícia entrara em greve, enquanto nos encarava com um semblante etílico que tantas vezes presenciáramos na vida. Por incrível que pareça não nos perdemos e menos de uma hora depois avistamos o teatro. Esperamos num banco típico de praça a abertura do guichê. Enquanto degustávamos as barras de cereais, meu comparsa recebeu o telefonema de outro comparsa, o que o convidara em primeira instância - ele estava a caminho e parecia perdido. Meu comparsa fez o que pode pra orientá-lo, eu resolvi comprar água. Não foi fácil, não havia uma única padaria ou boteco nas redondezas, eu só avistava restaurantes luxuosos e me perguntava se vendiam garrafas de água nesses lugares. Depois de uns vinte minutos de caminhada achei um oásis, digo boteco. Bairros burgueses são inviáveis pra mim, imaginei. Quando o guichê abriu veio a surpresa: a peça seria apresentada estritamente pra alunos de uma universidade local. Meu amigo protestava em silêncio, assim que o silêncio lhe pareceu barulhento, me confessou que não xingara a moça do guichê porque ela era muito educada e bonita, sobretudo do lado dela havia um segurança, um desses leões de chácara que o desencorajava com os olhos e o intimidava com os músculos. Voltamos rindo de nossa própria desgraça, ironizando, satirizando nossa falta de sorte. Hipotetizamos a possibilidade de tudo não ter passado de uma pegadinha; talvez estivéssemos em algum tipo de reality show, no entanto por mais que eu procurasse não encontrava sinais das câmeras escondidas - era real, e não era legal. Nosso comparsa perdido ligou outra vez, disse que chegara lá, meu amigo lhe contou o ocorrido e pediu que ele tentasse persuadir uma amiga que era estudante da universidade a ir até lá com dois amigos e conseguir os ingressos. Mas não dava mais tempo, ele não ligava de volta, esperávamos sentados e cansados num ponto de ônibus. Eu tocava uma música no violão recém-adquirido por meu comparsa, pessoas passavam, olhavam, algumas admiravam, outras riam, esqueciam e se iam.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

24²

Começamos nossa longa caminhada subindo uma avenida movimentada; carros, faróis, prédios e de vez em quando gente de verdade. Eu carregava minha mochila no toráx e abdome, parecia um marsupial e meu comparsa, biólogo formado, não pode deixar de rir bastante com meu comentário - emendou, no tom sarcástico e irônico habitual que "marsupial no Brasil é gambá". Ele flertava através de olhares com as moças bonitas que passavam(ou passeavam) em ônibus, admirava solitariamente algumas sílfides desavisadas que cruzavam nosso caminho - eu via tudo e ria comigo mesmo. Ele brincava dizendo que se não éramos irmãos em outra vida, éramos farinha do mesmo saco - só isso explicaria nossa sincronia nos pensamentos. Muitas vezes nem falamos nada, um apenas olha pro outro e sabe, é como a telepatia que você não encontra nos filmes de ficção. Meu comparsa trazia na mochila barras de cereais com chocolate prum inverno inteiro, placas de rede que eu havia lhe entregado antes por medo de esquecer depois, baquetas e esperanças. Como havíamos combinado, assim que chegamos numa rua famosa por ser um antro musical(há lojas de instrumentos nas quatro direções), fomos ver um violão pelo qual meu comparsa se apaixonara menos de uma semana atrás. Ele não toca o instrumento; faz conservatório de bateria há menos de três meses, tem um baixo mas não sabe tocá-lo também, no entanto é um colecionador de instrumentos dedicado - ele tenciona aprender a tocar todos eles um dia. Ele diz que toca berrante, mas não sei se é verdade nem sei se existe uma escala musical pra isso. Testei o violão durante alguns minutos, dei um veredicto positivo; gostei do instrumento - geralmente sou um cliente chato, testo muitos instrumentos e não levo nenhum e dessa vez não seria diferente, mas meu comparsa estava apaixonado pelo violão e o amor fez com que ele estragasse meus planos - fechou negócio com o vendedor poucos minutos depois. Ele parecia uma criança com um brinquedo novo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

24 - (0)

"Eu continuo vivo", não, não é isso, antes que alguém pense o contrário direi que não trata-se do refrão daquela canção bacana do Pearl Jam - essa expressão resume a sensação que tive ao deixar pra trás um dos maiores cemitérios do estado. Sai de casa pra ir ao teatro, acabei indo a um (o)cemitério; todavia toda história tem um começo e a minha não começou assim. Segunda-feira recebi o convite de um amigo e comparsa de longa data - ele disse que haveria uma apresentação gratuita do apresentador do programa "Provocações" da Cultura, num teatro que fica na capital do estado. Achei o convite meio intelectualóide e repentino, afinal eu vi o programa poucas vezes e, embora atestasse a qualidade não imaginava que o fato fosse entrar pra minha retrospectiva particular do ano. Aceitei, sem muito entusiasmo e laconicamente como de costume. Acordei cedo, encontrei meu comparsa no ônibus, conversamos sobre livros, filmes, música, filosofamos sobre tudo isso e mais um pouco, rimos de coisas bobas como bobos; inclusive, ouvi durante a viagem de ônibus a máxima do dia:"O que sua imaginação permitir e a física adequar" - meu comparsa, um canalha muito espirituoso por sinal, divagava sobre uma fantasia sexual, uma espécie de orgia experimental usando o corredor que dá acesso a catraca, mulheres nuas com as mãos atadas as pequenas alças pretas, similares as de mochilas, que ficavam presas numa barra de ferro superior do ônibus. Eu ri muito. O cara é um pervertido declarado! Eu não sabia ainda, mas aquele dia seria repleto de pérolas negras. Antes de descer do ônibus, vi que meu comparsa olhava com olhos de lobo pra baterista da antiga banda da minha irmã. Ele não sabia, quando contei o cara quis me matar - teimava que eu devia ter lhe apresentado; logo eu, que sou um péssimo relações públicas.

domingo, 21 de setembro de 2008

SOBRE ANNA: Fim do Mundo

Anna descobriu isso numa manhã. Era sexta-feira, 14 de junho de 1979. Mãos grandes e ásperas pesavam sobre seus ombros. Fazia um frio insuportável. Chovera muito algumas horas atrás.”Quando as pessoas morrem um anjo desce do céu e as leva para lá, Anna”, seu pai dizia-lhe com uma expressão apática e sombria. E ao ser perguntado por que sua esposa não acordava, repetia:”Ela está dormindo agora querida “– “foi para um lugar muito, muito distante daqui” – “não se preocupe, o papai está aqui“– “está tudo bem” – em seguida acariciava os cabelos e a testa da garotinha carinhosamente. Anna gritava, chorava, mas a mãe não acordava. Homens vestidos de preto revolviam a terra úmida com pás, jogavam-na sobre a cova recém-aberta. Mentiram para ela. Ela sabia. Sempre mentiam. Nada fazia sentido para Anna agora. Nem aquela coisinha chamada Vida. Pessoas morriam. A Vida era uma garotinha frágil no final das contas. As últimas palavras da mãe ressoavam como um estampido na sua cabeça:

- Não se preocupe querida...É apenas água salgada – dizia a mãe de Anna enquanto enxugava os olhos úmidos num lenço branco. Anna olhou para ela e indagou:

- Ué...Cadê o mar mamãe?

- Está aqui querida – a mãe de Anna colocou o dedo fura-bolos direito na íris esquerda azulada da garotinha, fez um movimento leve para baixo, tocou a pálpebra retirando um cisco e sussurrou no seu ouvido:

- Aqui fica a praia. Querida quero que me prometa uma coisa: você vai construir castelos de areia, está bem? – soluçou, sorriu sem graça e abraçou-lhe fortemente. Anna sentia um aperto – e o abraço não era o único responsável. Anna não esqueceria.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

SOBRE ANNA: Fim do Mundo(Prelúdio)

Anna pegou o último chiclete que sobrara na bolsa. Não podia desperdiçá-lo. Usaria-o com cautela. Dividiu-o em duas metades ligeiramente iguais, levou uma delas à boca e mascou lentamente, deixando que a goma tingisse sua língua de violeta. O gosto doce aliviava a tensão. A intensidade do efeito era irregular. Podia durar horas ou apenas alguns minutos. Anna não estava com sorte. Levantou-se e voltou a caminhar. O pátio do colégio lhe esperava uns 120 metros adiante. Os passos desritmados dela produziam um som desagradável, cacofônico e irritante. A sola do coturno estava seriamente comprometida. As pernas cansadas, formigando, imploravam por um descanso. Anna carregava o peso das pequenas coisas – coisinhas que significavam muito para ela. Passou por uma amarelinha tomando cuidado para não pisar no inferno. Os ecos dos passos desapareciam pouco a pouco, juntando-se às escadarias e um corredor amplo que levaria-lhe ao seu destino. Estava muito perto agora. Parou em frente um muro que continha frases subversivas escritas com spray vermelho barato, desenhos, marcas e corações de casais apaixonados. Tinha que estar ali. Anna não lembrava direito o que procurava com tanto afinco. Procurava qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Abaixou a cabeça, fechou os olhos, beijou o pingente do colar, lembrou-se da mãe. Ela lhe dera o colar assim que Anna completou sete anos de idade. Dizia que ele tinha uma história:”Tudo tem uma história Anna” – “não se esqueça” – não cansava-se de afirmar. Esta era antiga. Anna o carregava para onde quer que fosse. O pingente do colar tinha a forma de uma bola de gude. No interior dele havia uma substância, um líquido viscoso que conservava uma mariposa cinzenta morta. A aparência bizarra do colar levantava suspeitas sobre sua procedência. Anna gostava de mariposas – mariposas são legais, dizia. O fato dela não estar viva não lhe incomodava. Embora mariposas e insetos em geral possuíssem um defeito imperdoável. Geralmente tais criaturas morriam queimadas de maneira estúpida em alguma fogueira. Nasciam, viviam, morriam de maneira estúpida. Não eram muito diferentes dos humanos, Anna pensava. A Vida era cheia de encanto, mariposas e insetos – não na mesma proporção decerto. Mariposas simbolizavam o fim inevitável das coisas.

sábado, 30 de agosto de 2008

A Carta Azul

Acorda cedo, levanta, lava o rosto, os papéis na gaveta não mentem: aconteceu mesmo. É estranho, ele imaginou que as coisas voltariam ao normal quando acordasse. Normal...Normais...Agora vê o quanto se acostumou aos padrões. Era fácil, só precisava repeti-los continuamente, dia-a-dia, de maneira mecânica, sem sentir, sem pensar, sem vida. Sente falta da rotina, é irônico, mas nela encontrava um porto seguro. Se acomodou, se acostumou, o doparam, o domesticaram, depois o dispensaram - trocou seu quadrado, seu círculo, por alguma forma e fórmula geométrica desconhecida. Ele pega o ônibus, nota um rosto familiar dentre tantos estranhos; se cumprimentam, dividem lástimas, boa fé, uma integridade repartida ao meio - ele até ignora o português vulgar e vencido de seu ilustre companheiro a prazo. Aguarda sentado um exame, uma sentença, que alguém, algo lhe diga que pode voltar pra casa. O médico responsável lhe chama, ele atende, entra numa sala com as paredes brancas repletas de réplicas baratas de quadros famosos - sob a mesa, caído, está um retrato em preto e branco antigo. Ela é jovem, loira, bonita, ele imagina que o sorriso dela talvez seja a única coisa autêntica ali. Os olhos do médico olham pro monitor do computador, enquanto o mesmo lhe faz as mesmas perguntas que são respondidas do mesmo jeito. Ele volta pra casa, espera o almoço e alguma coisa que não esteja no cardápio - lá fora suas crenças morrem de inanição.

domingo, 27 de julho de 2008

DES-ORIENTADO

Houve uma época em que Ele atravessava o frenesi da avenida mais famosa da cidade Cinza, pra ir ter com a Liberdade noite-dia, fim de semana sim fim de semana não, conferir de perto o lançamento das novidades que vinham de longe; DVD's, mangás, ipod's, raridades, espiar revistas de contrabaixo japonesas em sebos locais(Dó-ré-mi-fá-sol-la-si é assim! Não importa o lugar), transeuntes falando um idioma diferente, indiferentes, tomar suco de goiaba na feira e relutar(mais uma vez) em provar Yakisoba, ver as gueixas solitárias sentadas nas escadarias da estação, ouvindo J-Pop/Rock, Enka, uma em três, seis, nove, doze, dezesseis num walkman made in Taiwan, gatos japoneses de porcelana chinesa que sempre muito amistosos, cumprimentavam todos que se dispunham a olhá-los do outro lado da vitrine)fora( - coisinhas que esquecera, mas que ainda moravam ali(dentro) Mas agora Ele está em casa, "seguro" e trancado - e gripado. Pensava em ir a casa de amigos tocar, fazer música, fugir, mesmo assim, nesse estado deplorável - imagina que é alguma espécie de mártir desvirtuado. Os amigos desistiram, não por causa dele, eles confessaram que agora tinham um pretexto pra se curarem de suas próprias "ressacas". Ele olha da janela, desolado, pra calçada vazia. A Vida passa, Ele fica. Só lhe restou a combinação Coldplay cobertor violão.

Konichiwa.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

AMÔRNICA: X = Y

O chevrolet vermelho comportava-se bem; apesar dos ruídos em quarta diminuta, o pára-brisas, os faróis, freios e buzina funcionavam perfeitamente. A vela do motor, desgastada, não apagava por pouco, contudo nada que uns ajustes na repimboca da parafuseta não dessem um jeito. O vidro traseiro, apresentava um adesivo, com a seguinte frase em letras pretas: ”Não ando à pé ou de bicicleta, tenho muitos cavalos que marcham”. Filosofia de pára-choques de caminhão sofisticada. Xavier ligou o rádio, sintonizou na FM familiar – tocavam uma canção que lhe agradava. A canção que Yai adorava – que repetia, repetia e repetia tantas vezes. Um teste de fogo para o aparelho de som velho e cansado. Xavier pensava nela. Ela enjoara outra vez. Inventava: balançou delicadamente o chaveiro com a inicial Y, abriu o porta-luva, retirou um par de sapatinhos de crochê, pendurou-os no espelho do passageiro, aumentou o volume do rádio, acelerou e começou a cantar. Xavier amava Yai. Ela lembrava-o de que era feliz.
20 minutos dali, Yai preocupava-se. A menstruação estava atrasada. E se estivesse grávida? Não estava preparada, pensou. Alisou o ventre rapidamente. Prosseguiu. Se alguém estivesse em casa atenderia. De repente, passou pela sua cabeça as dúvidas mais impulsivas e impossíveis possíveis: "o que Xavier acharia? Ele ainda gostaria de mim se eu engordasse muito? E todo aquele leite de soja transgênica que bebi de manhã? Afetarão o desenvolvimento do bebê? AI MEU DEUS VOU EXPLODIR!". Yai respirou fundo, pegou o chaveiro com a inicial X; empurrou a maçaneta da porta, deteve-se um instante: tinha a impressão de que ouvira algo. Sorriu, acariciou a inicial X e entrou no apartamento. Ficaria bem. Tinha Xavier. Xavier e Yai entrariam numa nova fase agora. Uma fase estranha e complicada. Precisariam ser mais responsáveis do que nunca, afinal, não eram mais alunos do primeiro grau. X e Y foram feitos um para o outro, embora um igual (=) insista em se meter entre os 2. A matemática é uma ciência exata. E o amor...O amor às vezes dá certo.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

AMÔRNICA: Gostosuras ou Travessuras?

Foi no mês de todos os santos, domingo, durante um festival em que crianças fantasiadas trocavam travessuras por gostosuras. Uma carruagem desgovernada atingiu um poste; libertando os cavalos que perderam os estribos e as estribeiras. Saíram em disparada, atropelando o velho Sam Hain que passeava distraído pela calçada. O laudo do legista apontou ”atropelamento por eqüinos ordinariamente adestrados “ como a causa mortis. Xavier foi ao velório sozinho. Yai estava indisposta. Xavier demorou mais tempo do que o habitual para arrumar-se. O da gravata cansava-lhe. Se havia algum segredo, algo que a maioria dos homens desconhecia e, meia dúzia de gatos pingados privilegiados sabiam, era como se dar o numa maldita gravata! – pensava Xavier. Parentes, amigos, funcionários e puxa-sacos, rodeavam o caixão abertoonde o defunto devidamente apresentável, exibia a testa proeminente, os cabelos ralos e grisalhos, e alguns hematomas no queixo que o de arroz não conseguira apagar. A viúva soluçava alto, amparada pelo ombro do filho único do casal. No ínterim dos soluços, balbuciava impropérios dirigidos aos estranhos, pobres diabos, que aproveitavam-se de sua dor e desgraça para saciar a fome; embriagar-se com uísque legítimo e importado. Xavier hesitava em cumprimentar-lhe. Apesar de ter cuidado pessoalmente do envio de coroas e outros pormenores do velório, não sentia-se à vontade com a situação. Xavier aproximou-se lentamente da viúva, ensaiando uma espontaneidade ensaiada, mas a voz da mãe de Dominique cancelou sua peça. Ela dizia que a novena começaria e pedia aos parentes e amigos mais próximos, que se reunissem nos fundos da capela. Xavier seguiu, cismado, as senhoras de véu negro, terços e rosários pelo corredor estreito e molhado que desaguava perto de um altar. O filho do Sr. Sam Hain, o advogado e o barbeiro, eram os únicos homens além dele ali. É costume que as mulheres recitem ave-marias enquanto os homens recitam o pai-nosso. Xavier não estava acostumado. Esqueceram de lhe avisar. Suava frio, os olhares reprovadores vinham de todas as direções(“ORAS BOLAS, QUE CULPA TENHO?! – NUNCA FUI COROINHA, PÔ!”) Xavier gritava silenciosamente. Pálido, olhou para o Cristo crucificado. Procurava a saída de emergência. Uma senhora sisuda, cheia dos ”blábláblás e nhem nhem nhens”, começou a tossir compulsivamente. Xavier aproveitou-se da distração ocasionada pela crise pulmonar dela, para furtivamente, num zás-trás, sair dali. Xavier viu o caixão disperso no meio da massa que outrora se juntava ali, aproximou-se, encostou na borda. Fitou o defunto, fixando-se no rosto. A face áustera revelava um homem que não conhecia sutilezas. Não tolerava entretantos, poréns e todavias. Dominique Sam Hain fora assim toda vida. Xavier lembrou-se dos tapinhas nas costas, as pilhérias matinais, as confissões extra-conjugais e todas as coisas que o rei da indústria da morte, o papa dos defuntos, deixara para trás e que agora ele trataria de devolver. Xavier afrouxou o da gravata. Fechou os olhos por um minuto. Abriu-os, mexeu nos bolsos da calça e o terno; encontrou uma moeda. Não bastava para a corrida do barqueiro. As coisas andavam difíceis no inferno, imaginava. Arrancou um botão do terno de linho emprestado. Talvez bastasse para uma corrida até o purgatório, Xavier torcia - não sabia rezar. Colocou o botão sobre o olho esquerdo do defunto. Por fim, pôs a moeda sobre o olho direito. Foi embora sem conversar com ninguém.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

AMÔRNICA: Contra Chronos.

Yai não superava a vizinha que acordava de manhãzinha para pedir café e açúcar emprestado, com um sorriso no rosto tão verdadeiro quanto uma Mona Lisa de Picasso. A estranha chamava-se Joana e tinha uma aversão inexplicável as consoantes: oiii, ééé, iiii, oooo, uuum compunham a maior parte do seu vocabulário social. Vestia um robe curto, vermelho e insinuante, carregava uma xícara e um jornal nas mãos. Trocava de namorado toda semana – Yai contara. Quando ia para o trabalho, Yai voltava a esbarrar com ela no corredor. Xavier a evitava. Por sorte(claro! Pois nãomelhor definição obviamente) o elevador enguiçava durante a semana inteira. Uma placa indicava:”Elevador em manutenção"– Xavier descia pelas escadas sem olhar para trás - era melhor correr dos riscos. Yai apressada, esbarrava nos outros moradores, desculpava-se com um perdão, despedia-se abruptamente e voltava a apostar corrida com Chronos. Estava no calcanhar dele outra vez. Esgotara seus créditos no último mês. Precisava apressar-se e o Tempo era um trapaceiro. Yai trabalhava numa clínica médica, na seção de radiologia há 9 meses. Era praticamente um serviço voluntário, que o salário mal cobria suas despesas, no entanto fora a melhor opção que encontrara. Não fora difícil escolher, recém-formada, não tinha muitas opções. Ali, 6 meses atrás, conhecera Xavier. A princípio Yai dissera para Xavier que caso ele estivesse à procura de um coração, estava no lugar errado – a seção de cardiologia ficava do outro lado, um pouco mais para a esquerda. Xavier usou cantadas bregas, presentes e pedantismo para convencê-la do que sentia. Yai não achara-o atraente, ria e, como estava sozinha e o rapaz era ao menos engraçadinho, resolveu continuar a história. Uma história repleta de vírgulas, parênteses, reticências e travessões. Ela ainda guardava na gaveta da cômoda, no meio de calcinhas, envelopes, cartas e cartões-postais, a chapa que continha o raio-x do primeiro beijo deles.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

AMÔRNICA: Nós Quatro.

Hoje Xavier cumpriria a promessa. Fora promovido. Ele acreditava que Yai precisava de um animal de estimação também – convencera-se disso. Todavia, não havia espaço para mais um São Bernardo. Chico ficaria solteiro. Xavier resolveu então pedir conselhos ao atendente do pet shop, que solícito, sugeriu-lhe uma iguana. Xavier olhou o réptil da cabeça a cauda, coçou a cabeça:”frio demais!” - em seguida perguntou ao atendente se não tinham nada menos exótico. O atendente então sugeriu-lhe um hamster. Um mamífero tradicional e caseiro. Xavier olhou para as gaiolas, viu um hamster devorando sementes de girassol – do lado, outro, reconchudo, suava na esteira. Aquilo pareceu-lhe engraçado. Faltava alguma coisa ainda - não era este. O atendente acendeu um cigarro, tinha um chapéu de explorador e tatuagens espalhadas pelo corpo inteiro. A girafa azul no bíceps esquerdo destacava-se. Xavier sempre teve sérios problemas com escolhas. Ele era o X da questão. Passava mais de uma hora na locadora, alugava os filmes errados e voltava para casa. Encontrava Yai cochilando no sofá, Chico esparramado no carpete, a televisão fora do ar e um balde de pipocas frias. Xavier acordava Yai fazendo cócegas na planta de seus pés. Cansada dos constantes atrasos, Yai resolveu ensiná-lo a portar-se diante a escolha de um filme: bastava que escolhesse um romântico, bonitinho, com um piano afinado e chuva que ela daria-se por satisfeita. Dessa vez Xavier não contaria com sua ajuda. Precisava escolher sozinho(“CÉUS, COMO FARIA ISSO?!) – se até as cores de seus pijamas foram escolhidas por ela!?. Quem sabe uma arara, pensou. Yai teria alguém para alfabetizar, conversar e dar alpiste todos os diasalguém que faria-lhe se sentir importante incondicionalmente. Xavier acompanhou o atendente até o viveiro, mas assim que adentrou o lugar, ouviu consternado araras vermelhas, azuis e amarelas saudarem o atendente com palavrões em uníssonoele parecia bastante popular. Xavier acabou deixando o pet shop com as mãos vazias e a promessa de que entregariam o aquário e sua moradora, uma estrela-do-mar, no fim de semana. Yai adorou a surpresa. Ficou ainda mais feliz quando descobriu o motivo. Disse que a estrela-do-mar se chamaria Lis. Uma estrela com nome de flor.Yai não dispensava flores. Xavier gostava bastante dos cactos que preservava num vaso de areia; feito com um pote de iogurte desidratado. Yai não sabia o que dizer para agradecer. Xavier disse que se ela não dissesse nada, arrancaria as palavras de sua boca à força: tomou-a nos braços e beijou-lhe e intensamente. Chico olhou para a cena e a estrela enciumado. Nestes momentos, Xavier esquecia o quão incomodava-lhe as abreviações que Yai usava: pra, tá, pra, tô, pra, quê, mor, etc.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

AMÔRNICA: Dois.

Yai adorava espuma de café com chantily, caramelos, all-star preto de cano longo, cheiro de naftalina, um vestido marinho com bolinhas brancas e o broche de São Longuinho, achados num brechó perdido, e dançar tango com a tábua de passar roupas. Xavier preferia cães e o programa de perguntas e respostas que passava sábado à noite. Xavier e Yai dividiam o apartamento minúsculo com um cão São Bernardo chamado Francisco. Às vezes, ”Chico" (como Xavier apelidara-o carinhosamente), tinha surtos de claustrofobia. Um pacote de jujubas, alguns afagos e um passeio pelas redondezas faziam parte da terapia. Xavier não sofria de claustrofobia, entretanto, escadas rolantes e elevadores provocavam-lhe calafrios. Antes de mudar-se definitivamente, fez várias perguntas a respeito da segurança dos elevadores do prédio. O síndico respondeu comclaros, pois nãos e obviamentes”. Neste dia, à noite, logo após a sobremesa, Xavier teve pesadelos horríveis. Sonhou que ratos, inquilinos indesejáveis do 209, aglomeravam-se na forma de uma tesoura; roíam e rompiam o cabo do elevador. “Bom, este foi mais original do que ser enterrado vivo, não?!” – ria nervoso, enquanto contava para Yai o ocorrido no café da manhã. Xavier realmente detestava elevadores – e balas com gosto de xarope. Yai não gostava de cães. Tolerava-os. Chico costumava confundir os abajures com postes – mijava neles, molhando o carpete(odiava os persas!) transformando o que antes era uma sala num banheiro underground. Yai ficava cricri quando flagrava-o mordendo, mastigando, fazendo cracks e crecks com os duendes, fadas e bruxas de cera que ficavam na sala, em cima da mesinha de centro. Ela tolerava as peripécias dele porque sabia que o amor exigia concessões, impunha condições, tinha seu preço. O dela tinha preço, nome e pêlos. Xavier prometera-lhe que assim que pudesse, compraria um osso de borracha para Chico num pet shop.