quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

SOBRE ANNA: As Causas e Defeitos

Enquanto afastava-se dos arredores do centro da cidadezinha, Anna sentia que estava cada vez mais perto de si – uma sensação estranhamente agradável. Anna atravessava um beco lúgubre e apertado; nele mal cabia a anágua do vestido preto bordado caprichosamente; cheio de rendas meticulosamente tecidas por aranhas prendadas(na verdade, velhas costureiras, mas Anna insistia em chamá-las assim) O vestido e o coturno preto conferiam um caráter sóbrio, peculiar e anacrônico a bela jovem. Anna parecia uma camponesa saída de algum conto dos“Irmãos Grimm”. Ela não era muito alta, mas o salto do coturno consolava os pezinhos ambiciosos. Decerto, a beleza exótica da jovem era notável. Uma pequena pinta em forma de meia lua logo abaixo do olho esquerdo, realçava tal característica. Um pontinho preto solitário no rosto pálido e inexpressivo. As bifurcações do beco tornaram-se maiores, até acabarem numa viela cercada por casas antigas; aquelas com sobrados decorados com arranjos de flores(um indício da primavera esquecida), fissuras semelhantes a rugas, ervas daninhas e trepadeiras que cobrem os muros. Nas paredes limbo abundante; e a ferrugem avançada dos portões indicavam a senilidade das construções. As casas já eram senhoras. Anna caminhou alguns passos, foi quando ouviu uma voz rouca chamar-lhe:

- Anna! Ei! Para onde vais tão cabisbaixa, filha?

Anna respondeu hesitante:- sei lá! – num misto de sinceridade e aflição - Logo, uma velhinha simpática debruçou-se sobre o parapeito do sobrado.

Eugênia Handsome vivia em Anesthesia há vários anos. Anna não sabia a idade dela – ninguém sabia. Diziam que ela era mais velha que a cidadezinha, mas não podiam afirmar com certeza. Sempre fora gentil com todos e era muito querida pelos vizinhos; exceto uma, conforme veremos adiante. Viúva e solitária, passava as tardes regando os girassóis do jardim improvisado no fundo do quintal; varrendo a varanda ou indagando os transeuntes a respeito de saúde, família, tempo e outras trivialidades. Vestindo uma camisola surrada, um chapéu engraçado e sandálias brancas, parecia a avó ideal. Sonolenta, a velhinha judia continuou:

-“Sei Lá” fica muito longe querida. Por que não entra e toma um chá comigo? Prepararei alguns bolinhos de chuva em um minuto - Asmática, ofegou durante alguns segundos e sorriu de maneira benevolente para Anna. Anna olhou para os lados à espera de algum pretexto, titubeou por um instante e respondeu:

- Desculpe Sra.Handsome. Estou com pressa.

- Vocês jovens...Sempre apressados! No entanto, sempre chegam atrasados - a Sra.Handsome balançava a cabeça consternada. De repente, uma terceira voz; esganiçada, com um sotaque esquisito e um timbre médio-grave inconfundível invadiu o ambiente:

- DIONÍSIO! DIONÍSIO! Onde estás você menino? - Anna agora notara que o som vinha do quintal vizinho à Sra.Handsome. Ouviu um rangido, viu o portão de ferro aberto e percebeu a presença de uma senhora de meia-idade magra e alta. Tinha olhos de coruja e um nariz fino, avantajado; o cabelo preto preso num coque, duas argolas douradas nas orelhas e vestia um vestido roxo-azulado.

Marlene Gossip mudara-se há pouco tempo para Anesthesia. Ao contrário da Sra.Hansome estava sempre mal-humorada. Queixava-se pelo descaso da prefeitura local - segundo ela as calçadas imundas não tardariam à trazer a peste para a cidadezinha. Havia um certo exagero nos comentários ácidos vindos daquela boca. Marlene Gossip não hesitava em utilizar as hipérboles mais absurdas para alarmar os cidadãos do suposto perigo que corriam. A maioria da população considerava-lhe uma louca decrépita – alguns mais afoitos, uma bruxa, para o resto era apenas um senhora excêntrica. Anna considerava válida qualquer uma das opções. O fato era reforçado pelos estranhos companheiros dela: 13 gatos. Dionísio era o caçula dos treze e estava desaparecido desde a meia-noite passada. Cinzento como uma nuvem nublada, possuía orelhas pontiagudas e pequenas, olhos curiosamente distintos: um azul turquesa e outro verde gelatina. Astuto, ágil e irrequieto, gostava de brincar com os insetos que encontrava no quintal. Todavia, logo entediava-se e raramente não matava as pobres criaturas. Marlene Gossip nervosa e inconsolável, virou-se para a Sra.Handsome e indagou:

- Vistes meu pobre Dionísio, Eugênia?! - num tom murmurante, quase patético!.

- Oras! Deve estar se divertindo com alguma bacante! – respondeu irônica a Sra.Handsome. Marlene Gossip nascera em Atenas.

- Acalme-se.

- Humpf! – Marlene Gossip não gostou nada da piadinha. Anna abaixou a cabeça e riu baixinho, embora não entendesse completamente o ocorrido. Quando levantou a cabeça, viu os olhos de rapina de Marlene Gossip na sua direção. Assustadores, fitavam obsessivamente os dela. Anna sentiu que não conseguiria fitá-los por muito tempo. A sua garganta foi consumida por um sabor amargo e desagradável. Estava hipnotizada. Foi despertada do transe pela voz rouca e sussurrante da Sra.Handsome:

- Anna! Venha para cá menina...Vamos! – a Sra. Handsome tossia compulsivamente.

- Não, me desculpe, mas hoje eu realmente não posso – Anna olhou os arredores e não viu Marlene Gossip. A Sra.Handsome interrompeu a investigação de Anna:

- Esqueça aquela chata! Como vais teu pai mocinha? – indagou serenamente, com um semblante que deixava Anna constrangida, a Sra. Handsome.

- Na mesma... - o desapontamento de Anna era digno de complacência. A Sra.Handsome pensou por um instante:

- Hmm...Compreendo. Quanto tempo faz? Nove anos?

Anna como num passe de mágica, encontrava-se no seu quarto chorando. Balbuciava as palavras,”mamãe não vá”repetidamente. O pai tentava consolá-la em vão. A expressão gélida, apática e mórbida não dava sinais de mudança. Ele vagava pela casa como um fantasma assustado. Catatônico, observava o retrato da esposa que tanto amara um dia. Abria as janelas e deixava que o vento levasse o resto do sopro vital que ainda restava-lhe. Depois daquele dia fatídico, restara-lhe muito pouco; apenas lembranças, fumaça e desespero. Tornou-se um homem frio e lacônico, que limitava-se a cumprimentar a filha acenando timidamente com a cabeça. O silêncio ensurdecedor do jantar tirava o apetite de Anna. O pai comia sozinho, mastigando lentamente, como se fosse um condenado recebendo a última refeição. Anna não suportava mais olhar para o pai que definhava a olhos nus e negros. Inclusive, chegara a sentir saudades dos sermões dele. Anna ligava o aparelho de som num volume demasiado alto, faltava ao colégio, fumava, fazia tatuagens, colocava piercings, tingia os cabelos, pintava as unhas e as pálpebras de preto, rabiscava as paredes brancas do quarto com giz vermelho, mas nada chamava a atenção do pai. Nada...Absolutamente nada – nem as marcas nos pulsos. Anna passava a maior parte do dia no quarto trancada, com as janelas fechadas, para que a luz do sol não a incomodasse. Agachava-se no canto da parede, fechava os olhos e começava a cantar uma canção bem baixinho:”isso é apenas um sonho ruim, isso é apenas um sonho ruim, isso é apenas um sonho ruim, isso é ape...” - Então Anna acordou.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

E ELE DISSE AH DEUS!

Hoje é mais um dia ruim apenas, é que às vezes Ele esquece que as coisas sempre foram assim.


P.S: Imagem por Rafaello, amigo, quixotista, artista e pessoa excepcionais.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

MAPA ASTRAL

Asteróide B está situado na Nebulosa de Andrômeda, assim que atravessamos o rodoanel de Saturno. É preciso cuidado com os tubarões-satélite, uma vez que o mar sideral não está para peixe, tampouco para os de Peixes. A Lua lava suas mãos com as marés, portanto atenção redobrada neste trecho. Caso chegue a este ponto salvo(não garanto a sanidade do viajante), basta uma corrida no vácuo, pois logo após uma placa com os dizeres "Posto Black Hole a 180.000.000 KM", haverá um atalho: Asteróide B estará a apenas 360.000 KM luz do lado escuro da Lua.

BEM-VINDO, VOCÊ ESTÁ EM SOLO ASTERISCO E PONTO*

P.S: Di’stante é pisciano, no entanto não sabe nadar e aquários lhe causam hidrofobia; assistia Cavaleiros do Zodíaco na falecida Rede Manchete(que Zeus a tenha!), mas é cético com relação a horóscopos e mapas astrais. Resiste firmemente às investidas de Lis, flor e estrela, moradora de Asteróide B e integrante zen-mor dos membros da Luz, que insiste em lhe construir um mapa astral.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

SOBRE ANNA

Anna Lou esquecera os óculos em cima do criado-mudo. Anna sempre enxergou bem, porém acreditava que os óculos davam-lhe credibilidade. Pessoas que usam óculos parecem mais inteligentes e confiáveis, dizia para si mesma. O aspecto visual também contava, pois sentia-se mais“interessante”quando usava-os. Anna estava certa. No entanto, Anna não era inteligente. Não gostava de pensar. Pensar deixava-lhe confusa. Anna era assim. Todavia, era confiável...Contanto que a ocasião permitisse, é claro!. Afinal, sabia que existia uma sensível diferença entre o que se pensa e o que deve se dizer. Orgulhava-se disso. Sentada no banco de uma praça, Anna mascava um chiclete freneticamente. Parecia ansiosa...E não estava sozinha. Alguns pombos faziam-lhe companhia. Esperava que a“Sorte”encontrasse-lhe. Quem sabe até, acenasse-lhe e sorrisse. Olhou para o relógio. Ela estava atrasada. Os olhos de Anna não eram grandes. Embora escondessem uma melancolia tênue e aconchegante, eram claros como uma manhã ociosa de novembro. Mas por algum motivo ainda desconhecido, estavam nublados naquela tarde. Contrastavam com os cabelos tingidos de maneira negligente e heterogênea: fios ora arroxeados, ora violetas, ora em tons de vinho embriagante; longos, ocultavam a inscrição”Carpe Diem”que ela fizera na nuca meses atrás. Possuíam um cheiro peculiar. Não era forte, sequer suave – era apenas peculiar. O Ocaso já acariciava-lhe a face pálida quando Anna cansou-se de esperar e decidiu caminhar sem direção. A estrada parecia-lhe mais estreita que o habitual. Enquanto caminhava, Anna observava cuidadosamente o letreiro hollywoodiano da cidade.

Anesthesia era uma cidadezinha situada nos limites de Nowhere e Anything. Estimava-se que a população já ultrapassara a casa dos 15.000 habitantes. Embora as autoridades locais negassem, ainda haviam resquícios de um pseudocoronelismo velado na administração vigente. O prefeito defendia-se dizendo que tratava-se apenas de intrigas da oposição. A primeira dama com o bom senso que é inerente as mulheres, aconselhava-o a contratar um novo assessor de imprensa. A sensatez é uma qualidade feminina. O artigo comprova a afirmação. Como toda cidadezinha que se preze, Anesthesia possuía botecos(poderia encontrá-los em qualquer esquina. Caso não encontrasse, eles encontrariam-lhe), farmácias, mercearias, padarias, um posto de gasolina, locadoras de vídeo, um supermercado, além dos estabelecimentos típicos à qualquer cidadezinha do interior. No ocaso do dia via-se pessoas sentadas na calçada, divagando a respeito da vida alheia, donas de casa lavando roupas, estendendo-as em varáis improvisados, homens lavando carros, crianças empinando pipas, jogando calçados pelo cadarço a fios de alta tensão - Enfim, ali encontraríamos tudo que pudesse ser encontrado numa cidadezinha chamada Anesthesia. Tudo. O ar de Anesthesia estava impregnado de provincianismo há anos. Os dias eram longos e extenuantes. As noites curtas demais para sonhar; sempre mudas, o que perturbava demasiadamente Anna. No silêncio podia ouvir seus pensamentos. Eles cheiravam ópio. Os cães vira-latas não faziam nenhuma objeção a lei do silêncio.
Anna sentira-se entediada pela manhã e indagava-se por quanto tempo ainda sentiria-se assim. Dobrou uma esquina e avistou a padaria”Dreams Store”. Talvez não fosse má idéia comprar alguns sonhos. Sonhos...Não tinha muitos, mas neles era muitas. Anna agora lembrava-se de uma antiga revista que lera:”Quando você sonha, às vezes você se lembra. Quando você acorda, você sempre se esquece”. ”Sonhemos acordados então”, Anna resmungou indignada. Ela existia, e isso bastava-lhe – pensou ponderada. Nostálgica, lembrava-se da época em que tinha sete anos de idade. O pai dissera-lhe certa vez que o número sete significa perfeição. Acariciou o pingente extravagante do colar que usava, abriu a bolsa e, tateando incerta, encontrou alguma coisa no meio dos maços de cigarro usados. Era uma fotografia. A garotinha parecia-lhe familiar. No verso do retrato estava escrito à nanquim os dizeres:”Janeiro 1979 - Anna no balanço”. Anna sorriu para a garotinha e lentamente voltou a caminhar. Era janeiro, tudo era perfeito. Por um momento Anna acreditou que seria feliz. Estava quase certa.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

MELISSA (IN)VERSO

Melissa, é isso que te deixa triste?
É isso que te faz sofrer?
É isso que você quer?

Eu que por tantas vezes violentei sua boca,
Sussurrei poesias profanas em seus ouvidos,
Tirei sua roupa, rocei com o nariz seu umbigo(o centro do meu mundo),
Enquanto você, indiferente e fria,
Como quem não está nem aí nem ali nem aqui,
Desdenhava do meu desejo com risos e ironia – não entendo.

Rapazes, mulheres, homens velhos e moças,
Buscam abrigo no meio de suas coxas.
Você não escolhe credo, idade, raça, sexo ou cor.
Hoje empresta aos outros aquilo que já foi meu.
Todavia, não está feliz – ouço sua dor.

Eu que punha minha cabeça em seus seios, meu travesseiro,
E dormia fatigado, sei.
O meu sono despertava complacência em ti.
De manhã, acordava com um gosto salgado nos lábios.
Eram lágrimas, eu já sabia.
Eram as suas e eu já as adotara como as minhas.
O odor de ópio no quarto, causava-me ânsia...Uma agonia sem fim.
Doía-me vê-la assim.

Melissa, concubina, esta tristeza cinza não combina com o seu cabelo rosa.
À noite, você tranca-se no banheiro, olha-se no espelho e o medo reflete:
Medo do tempo. Medo da gravidade. Medo de ficar sozinha.
Medo de sentir-se só...Medo. Medo outra vez. Medo sete vezes.
Ele não te deixa dormir, tampouco sonhar;
Puxa seus cobertores, veste suas roupas e te deixa nua...Nua e Só...
(não consigo mesmo!)

Eu, ingênuo, tolo e infantil, um dia acreditei
Que fechando as janelas do quarto impediria,
Que"insetos"hostis te picassem.
Esqueci, não sabia ou queria saber,
Que escondia agulhas na bolsa carmim.
Melissa, é Isso que te deixa triste.
É por Isso que sofre.
Não é Isso que você quer – você não sabe o que quer...
Oras Isso, oras Essa!

Melissa: deixa Disso.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

"RAIN DOWN...COME RAIN DOWN"*

As chuvas teimosas de Janeiro, mais uma vez encharcavam os sapatos de Niño; molhavam suas meias sujas de lama , entrementes, um resfriado o esperava em casa. Niño evitava os bálsamos de farmácias. Sabia que só precisava de tempo. Sempre fora assim no passado, é no presente, será no futuro. Niño se encolhia no guarda-chuva vermelho. Saiu de si por um instante, voltou seus olhos azuis para o céu: Ele parecia mais feliz outrora(por que Ele chorava afinal?) E com as lágrimas Dele sobre as costas, Niño se afogava em si outra vez.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O PRESENTE DE SATURNO: Estrelas, Ameixas, Anéis e o Fim

A caixa registradora emperrara outra vez. Pela sétima vez naquela semana o rapaz libriano desculpava-se pelo transtorno. Aproveitava o ensejo para sugerir aos clientes que olhassem os artigos em promoção:

- Vai demorar muito? – indagou Laura impaciente.

- Só um minutinho – o rapaz dissera a mesma coisa há quinze minutos atrás. Laura sentiu falta de algo na sacola:

- Vocês tem bolo de chocolate?

- Terceira fileira à esquerda – disse o rapaz libriano sem tirar os olhos da caixa registradora. Laura adentrou o setor de frios e congelados, escolheu um bolo mediano de brigadeiro, mas frustrou-se assim que notou a ausência de cerejas. Dirigiu-se ao caixa:

- Onde estão as cerejas?

- Ah, sinto muito dona! Não temos – a caixa registradora voltara a funcionar.

- No entanto, temos ameixas fresquinhas! – o rapaz libriano sorria espalhafatosamente. Laura arrependeu-se da indagação. Pôs uma dúzia de ameixas na sacola:

- 57, 80 – disse o rapaz libriano. Laura abriu a carteira, retirou duas notas de cinqüenta e entregou ao rapaz:

- Me diz uma coisa: a dona que vive no observatório abandonado? Laura fez uma expressão séria e respondeu:

- Ex-abandonado. Sim, sou eu...Por quê?

- Talvez a dona possa me ajudar – o rapaz libriano franziu a testa.

- Fale – disse Laura.

- Conheci uma moça muito bonita ontem. Ela disse que é de escorpião. Eu sou de libra. A dona que mexe com os astros e estrelas poderia me dizer: vai dar certo? – as bochechas do rapaz libriano ruborizaram.

- Olha...Não sou astróloga rapaz, sou astrônoma – (NÃO BASTARAM AS CHACOTAS NA ÉPOCA DO COLÉGIO, AINDA ISSO AGORA?!) A consciência de Laura se contorcia. Laura cruzou a catraca, virou-se, e vendo o abatimento no rosto do rapaz, disse:

- Ei garoto! Vocês serão muito felizes – sorriu timidamente(só tenha cuidado com o veneno dela) – sua consciência sussurrava. O rapaz libriano, radiante, agradeceu-lhe, olhou para os lados, beijou o signo na corrente de prata e pulou feito criança. Laura saiu da loja de conveniências carregando uma sacola cheia de enlatados, conservas, instantâneos, um bolo de brigadeiro, ameixas frescas e a sinceridade escondida no bolso.

Laura pedalava com dificuldades, o peso da sacola e as pernas longas e finas; cambitos, atrapalhavam o equilíbrio dela. Laura parou numa calçada, sentou-se; ficou observando os transeuntes seguirem a vida – alguns iam na rabeira. Focou sua atenção num poste, imaginou se ele se movera um 1 centímetro ao longo do ano. O cotidiano cerceava sua imaginação. Laura podia imaginar o que viria a seguir, não fosse o Acaso; ele estragaria seus planos, cancelaria a sessão da tarde e lhe faria uma surpresinha:

- Degustaria de ver la jóias?

Laura assustada, virou-se procurando a dona do sotaque hispânico. Ali estava a jovem:

Era bem menor que Laura, tinha cabelos negros e encaracolados até a cintura, olhos cor de terra molhada e a pele bronzeada; usava um lenço vermelho, uma blusa de lã bege com bordados andinos, uma saia preta com babados vermelhos até a altura das botas de camurça marrons. As argolas douradas nas orelhas e pulsos, o piercing prata no nariz e sobrancelha e o colar feito com algas azuis, completavam o visual ultrajante as convenções regionais. A jovem também carregava um case de violão nas costas. Aparentava ter dezesseis – com juros uns dezoito anos. Não falava muito bem o idioma local(combinava as palavras de maneira aleatória) Ela estava longe de casa. É uma cidadã do mundo, uma nômade, imaginou Laura. A jovem ajoelhou-se, abriu o case, revelando um mostruário improvisado: anéis, pulseiras, colares, brincos, jóias e bijuterias na ordem que se desejasse encontravam-se no”Kit Eldorado”. A jovem sorria para Laura exibindo os molares 8 quilates.”A garota é uma cigana desgarrada, provavelmente perdeu-se da caravana e, sem comida e dinheiro, fora forçada a tornar-se uma mascate para não vender-se pelas ruas” – Laura não conseguia teorizar nada melhor:

- Desculpe, não tenho dinheiro – o que restara das compras pagariam o conserto do aquecedor. A jovem pegou um anel dourado, lustrou com esmero e uma flanela branca, abriu a palma da mão de Laura e colocou-o ali.

- O QUE ESTÁ FAZENDO?! – Laura estava confusa.

- Vendo – respondeu a jovem.

- Vendo o quê? Não pedi que lesse minha mão. Menina só tem garranchos aí, não adianta, não descobrirá nada – Laura zombava da jovem, da quiromancia, astrologia, alquímia ou qualquer coisa que lhe parecesse uma”pseudociência”. Subitamente a jovem fechou a palma da mão de Laura e disse:

- Quiero que fiques com ele, bien?! Não te preocupas...Tenho muchos. Hoje é uno dia especial para ti, no?!

- Não posso aceitar...Não tenho como pagar – disse Laura angustiada.

- Las ciruelas – disse a jovem sucinta.

- Hã....Ah, você quer comida? É isso, né?! Posso te dar um pouco se quiser – Laura esforçava-se para compreender o dialeto usado pela jovem.

- Gracias, mas solo as ciruelas já basta-me – a jovem parecia convicta. Laura pensou em insistir, porém o olhar enigmático da jovem condenava suas intenções. Resolveu entregar o saco com ameixas sem maiores”porquês”. A jovem abriu o saco, retirou uma ameixa amarelada, colocou na outra mão de Laura e partiu levando o saco de ameixas, deixando um círculo no lugar e a curiosidade de Laura para trás. Laura só percebeu instantes depois, mas o estômago protestava; precisava voltar para casa - logo, procrastinaria o pensar em quando e como a jovem realizara o truque.

Laura devorava um sanduíche de atum, saboreando-o vigorosamente, enquanto o cappuccino de canela se encarregava de dissolvê-lo. Satisfeita, limpou a boca com um guardanapo, embrulhou-o e arremessou numa cesta lotada de papéis – ossos do ofício. Inclinou a nuca, bocejou, adormeceu debruçada sobre o computador.

O som do lusco-fusco a acordou – o crepúsculo chegara. Laura poderia explorar o espaço livremente agora, sem o engarrafamento de nuvens e aves habitual. Ligou”Galileu”, o obsoleto telescópio soviético, fez alguns ajustes na posição da lente e desceu as escadas. Esquecera de ligar o dispositivo do telhado. O celular tocou, ela reconheceu imediatamente o número – desligou-o sem pestanejar. Ele tentara outra vez. Houve uma época em que desejou cortá-lo em pedacinhos – que um meteorito caísse na cabeça dele ou que fosse sugado por um buraco negro, enfim, mas agora só a ausência dele já bastava-lhe. Ela trocara as mentiras dele por barras de chocolate suíço. Ambas se equivaliam – vinham embrulhadas em papel laminado e eram doces. Se se sentisse carente olharia para o retrato de Newton na estante. Isaac era inteligente, embora fosse mais velho e retrógrado, estaria ali quando ela precisasse. Laura voltou até Galileu, podia-se ler em seus lábios algo do tipo:”Que acha de darmos um passeio pelo infinito, hein?!”. Laura despia a Via Láctea, admirava Andrômeda, identificava satélites fora de órbita, no entanto não encontrava sinal dos anéis de Saturno, tampouco os homenzinhos verdes de Marte. Pensou no aniversário, no bolo de brigadeiro na geladeira, na ameixa e no anel – tinha a estranha sensação de que esquecera algo importante. Foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou o bolo e colocou-o sobre a mesa. Pôs a ameixa com o anel em volta no centro. Acendeu três palitos de fósforo, um a um - apagou-os logo em seguida. Não fez nenhum pedido. Tudo estava em seu devido lugar.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

NÃO É MAIS UMA ESTÓRIA; É HISTÓRIA!

Certa vez, conversava com um amigo a respeito do poder que as mentiras contadas exaustivamente adquirem ao longo dos anos . Afinal, dizem que uma mentira contada várias vezes, transforma-se numa verdade. Acredito que tal afirmação denuncie o descaso que temos com a história. É engraçado, irônico até, que tenhamos conseguido sustentar um sistema político baseado em interpretações tendenciosas de textos históricos. Todavia, tal sistema está fadado a desaparecer - as amarras filosóficas que o sustentavam afrouxaram-se vertiginosamente nas últimas décadas. Acredito que estejamos prestes a vivenciar uma nova era. Entretanto, o que milênios de dogmatismo trouxeram para a humanidade? Além é claro de intolerância religiosa, fundamentalismo filosófico, cruzadas bárbaras, inquisição, o Vaticano(Papado)fogueiras des(h)umanas e arbitrárias(heresia politicamente correta?)indulgências vergonhosas...Só para citar alguns exemplos. A alforria está próxima; não trata-se de otimismo e nem é fé; é fato! Não tenciono criticar católicos fiéis, cristãos ortodoxos, protestantes, muçulmanos ou seguidores de quaisquer religiões. Contesto a idéia que nos foi vendida, idéia esta, que custou a cabeça de milhares de homens e mulheres. Decerto, contestá-la é bem mais prolífico que atacar pessoas indiscriminadamente. Se os bons vão para o céu, após uma vida abnegada, pois bem! Ainda prefiro ir para onde quiser e com meus próprios pés.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

EFÊMERA

Sejamos intensos;
Ainda que vivamos menos.
Somos efêmeros.
Não fomos feitos para durar.
Nada dura, perdura, o Além dirá!
Felizes aqueles que não vivem a prazo,
Que gozam a vida sem percebê-la.
Possuem pelas horas um grande descaso
Em suas almas, uma pequena estrela.

sábado, 3 de novembro de 2007

MANUAIS E PRÁTICAS

A mãe ouve risos, sussurros(confissões ao pé do ouvido), interjeições estranhas e gemidos vindo do corredor. Assustada, sobe as escadas apressadamente, bate na porta do quarto e diz:

- Filha, você tá bem?! Fica aí falando sozinha. O que tá acontecendo?. A filha ajeita os botões da camisa, fecha o zíper da calça jeans, levanta-se da cama e ainda recompondo-se diz:

- Não esquenta mãe...Não é nada não. Sempre falei sozinha mesmo – faz cara de amuada e amontoa-se aos lençóis libidinosos outra vez. A mãe insatisfeita responde:

- O QUÊ?!

- Não disse! – diz a jovem brincando com um sorriso rabiscado na palma da mão direita. A mãe consola-se com a ignorância e diz antes de descer as escadas, que o café vai esfriar. A jovem então volta a ensaiar o monólogo monossilábico manual e imoral da vez.

domingo, 28 de outubro de 2007

O PRESENTE DE SATURNO

36...432...1.728...13.356...315.576...18.934.560...Hmm...1.136.073.600. Enrolada numa toalha Laura resolvia cálculos no espelho embaçado do banheiro. Os lábios roxos e murchos, acompanhavam o ritmo frenético do dedo indicador direito. Os olhos, fixos, pareciam fora de órbita. Laura abaixou a cabeça, ofegou, expirou vapor na parte inferior do espelho e rapidamente traçou uma linha reta – abaixo dela escreveu o resultado em algarismos romanos. Laura comemorava trinta e seis janeiros naquela manhã de agosto. Assim que concluiu com êxito a eqüação, saiu do banheiro, desviou dos objetos vindos de um planetário espalhados pela sala - trancou-se no quarto. Precisava aquecer-se. A noite passada fizera 3 graus, a água por pouco não congelara nos canos – Laura sentiu frio, muito frio, sua alma encolheu-se e o quarto transformou-se numa verdadeira câmara frigorífica. O inverno tingira de branco a paisagem, obrigara-na a abrir o guarda-roupa, violara seus domínios; sentava-se ao lado dela na lareira ou na mesa durante o café da manhã. Como ela o odiava! Ele sempre lhe trazia lembranças; um sabe-sei-lá-o-quê que a devorava por dentro. O aniversário reforçava esta sensação. Laura secou os cabelos curtos tingidos de vermelho, pôs a calça pesada, duas malhas e uma blusa de lã verde; colocou as meias sujas de cera amarela e calçou as pantufas de urso. Ajeitou os óculos. Viu que o rádio-relógio apontava 8:15. Não conteve sua irritação, foi até a janela e esbravejou: - SOL?! É, VOCÊ MESMO SEU PREGUIÇOSO! Já está na hora de acordar, não acha?! – tentava ser diplomática. Uma luz frágil que entrava pelas frestas da janela foi a única resposta que obteve. De repente, pensou em como chegara até ali – viera montada em seus sonhos. Laura estava sozinha num observatório precário, numa terra desconhecida, fazia frio e não restara uma única barra de chocolate. Ela ainda podia se lembrar do dia em que pediu ao pai uma luneta de presente de aniversário – faria doze anos naquele dia. O pai riu, disse que uma bicicleta nova seria mais conveniente para uma mocinha. Fizera questão de ressaltar o”mocinha”. Na data marcada uma bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros brilhantes, a esperava na garagem. Emburrada, agradeceu pelo presente e voltou para o quarto sem jantar. Dias depois, às escondidas, vendeu a bicicleta e comprou uma luneta pela metade do preço numa loja de antigüidades. Desde então a garotinha passava as noites em claro, observando a imensidão escura do céu, as estrelas de plantão; nomeando as constelações e povoando outros planetas com a imaginação. Se o pai perguntasse pela bicicleta, usaria o que aprendera nas aulas extra-curriculares do colégio. Encenaria uma tragédia grega onde garotinhas são vítimas de roubo, coerção física e Hércules chega atrasado. As garotas da sua idade sonhavam em ser veterinárias, médicas, advogadas, atrizes, estrelas da música pop(clones da Madonna ou vice-versa), enquanto as menos abastadas bastava uma casa com garagem, piscina e cerquinha branca – isso atendia satisfatoriamente suas necessidades burguesas. O gosto pela astronomia, assim como seu visual(Laura parecia uma hippie e era pelo menos 10 centímetros mais alta que as colegas de classe), despertavam inveja e chacotas rotineiras. Apelidaram-na de”Miss Rocket”. Era comum vê-la sendo indagada pelos colegas quando atrasava-se:”Não veio de foguete hoje?”O que foi?”Acabou o combustível?” – as indagações vinham acompanhadas de sonoras gargalhadas. Laura não reagia. Ouvia calada a tudo e a todos, pois esperava que se cansassem um dia. Até esse dia ninguém souber dizer onde acabava a tristeza, onde começava a garota. Foram anos difíceis, mas ela sobreviveu a tudo aquilo. Todavia esquecer, não esquecera, não pudera afinal. Não demorou até que se tornasse a primeira garota a ganhar o prêmio anual de física – concedido apenas aos melhores alunos e professores por sua colaboração e dedicação a ciência. Laura prestaria o exame para física, entretanto, os discursos inflamados do pai, desembargador aposentado, fizeram-na desistir do sonho de infância e escolher o curso de direito. Laura formou-se em direito, mas depois de ocupar durante três anos a cadeira macia e confortável de um escritório, cansou-se das cláusulas, tribunais, causas e ações e o latim vulgar dos colegas de profissão. Rescindiu seu contrato com o Diabo. Afinal, estava insatisfeita por excelência. Colocou seus pertences numa caixa de papelão, preservando o diploma moldado, o porta-retrato da formatura e a caneca de estimação decorada com estrelas. A lordose e úlcera que adquirira pegaram carona. Laura inscreveu-se no exame de uma das mais conceituadas universidades do mundo. Falhou vergonhosamente nas duas primeiras vezes. Na terceira vez por um ponto, um mísero ponto, não conseguira realizar o sonho, provando o gosto amargo do”quase”e, o quão pouco pode ser muito às vezes. Ingressou na universidade na quarta tentativa, sob os protestos do pai, a angústia da mãe, a desconfiança de amigos e a certeza do que queria.”A astronomia é o caminho mais curto para as estrelas” – disse orgulhosa e confiante no encerramento do discurso de admissão.

Laura despertou pela segunda vez, dirigiu-se a cozinha e estupefata, constatou que alguma coisa peluda fizera uma festa sem convidá-la. Antes que percebesse um extenso”putz”saltou da sua boca até a mesa – mordiscou os lábios censurando-os. A caixa de cereais roída, derramada sobre a mesa, não deixava dúvidas: ele voltara. Ela comprara algumas armadilhas para ratos, porém o fabricante não se responsabilizava pelo uso indevido, afinal, furões não são ratos, embora pertençam a mesma família. Laura bufou, pegou a pá perto da pia e com a ajuda de um pano, apagou os vestígios da travessura noturna. Vasculhou o armário, fogão e a geladeira em busca de algo prático, instantâneo e comestível – era adepta do”não faça, compre feito”. Não sobrara nada. A cidadezinha mais próxima ficava há uns 40 minutos de bicicleta, no entanto ela estava às voltas com a entrega de um relatório. Tinha um prazo apertadíssimo e as cobranças do instituto nacional de pesquisas espaciais. Caso cortassem sua verba, Laura já decidira o que fazer: venderia a idéia de casa-observatório para uma construtora moderninha qualquer. Conseguira a proeza de transformar um observatório abandonado, mal-condicionado, sujo e pequeno, num simpático e confortável lar, desde que você não se importasse com sofás e estantes disputando espaço com um telescópio soviético obsoleto, caleidoscópios artesanais e dormir coberto pelo céu. Laura saiu da cozinha arrastando as pantufas, sentou-se em frente a escrivaninha, ligou o velho Mac, acendeu a luminária em forma de lua. Digitou sua senha pessoal - disse um animado”bom dia”para o computador que inicializara. Workaholic incorrigível, amava-o, mas assim como o canto, a dança e a culinária, este era apenas mais um de seus amores não-correspondidos.

Seis horas depois Laura estava exausta e faminta. Ligou o celular – havia 4 chamadas não-respondidas e 2 mensagens na caixa postal. Ativou o viva-voz; Sara lhe parabenizara e dizia sentir saudades. Laura sorriu, discou alguns números, mas abortou a ligação. Se ligasse agora ouviria os sermões casuais dela:”Laura, o que você precisa é de um namorado! Há quanto não faz aquilo?” –“você sabe, né?!” – “aquele palavrão de 4 letras que os adultos geralmente fazem entre quatro paredes”. Sara diria tudo num tom debochado, recheado de metáforas pífias e ironia. A segunda mensagem era da mãe que implorava que ela voltasse logo – desejava felicidades e recomendava que se alimentasse direitinho.”Farei isso daqui a pouco, está bem?!” – Laura repetia em silêncio. Quando preparava-se para desligar o aparelho, notou que chegara uma nova mensagem de voz:”Laura, aqui é a mamãe outra vez. Esqueça esse computador, desligue a luminária e vá comer!” – “você não é uma planta; não realiza fotossíntese, entendeu?!”.”Beijos”: - JÁ ENTENDI, JÁ ENTENDI! – respondeu Laura exaltada. Laura então levantou-se, enrolou um cachecol xadrez no pescoço, pôs a touca; pegou a carteira no criado-mudo, calçou as botas pretas, desligou a luminária e colocou Mac para dormir no modo de espera. Caminhou até a bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros enferrujados.

CONTINUA...

sábado, 20 de outubro de 2007

SOMBRAS, SOBRAS E SOBRADO

Ando só, descalço pelas ruas cheias de percalços do que fui; onde fui-se...Vago pelas lembranças vagas de meu passado. Um vagão descarrilhado. Canso. Sento-me aqui, cabisbaixo, cá debaixo de uma sombra que assombra o sobrado que restou em meus sonhos. Ouço passos na calçada(é a Vida que passa) Lembro-me da sua voz – há tempos não a via ouvia. Encontro-me nu e jogado. Fantasio. Imagino vê-la passando na esquina ao lado. Corro desesperado, e sôfrego, esfrego as mãos para não congelar. Faz muito frio. Procuro-te mas não lhe encontro. Para onde foi ou se foi afinal? Insano, rio: lembro que te esqueci.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

AURORA BORED

A Manhã me acordou atrasado. Era tarde demais!(hã?!) A Noite chegava às pressas e, eu, que já não tinha mais pressa, esperava solenemente pelo pôr-do-sol. Estou entediado. O Sol depõe a meu favor. E o Amanhã logo baterá a minha porta, dizendo:”tem alguém em casa?” – sorrindo insistirá:”tem alguém aí?”(existo, cogito e hesito ao mesmo tempo) Não sei o que dizer. Também não sei sorrir. Só-rio-somente-sozinho. A Manhã talvez saiba. Amanhã quem sabe. Hoje fujo...

ADENDO - AGRADECIMENTOS, AFINS E FAST-FOOD LITERÁRIO*

Após conversar com uma amiga, conclui que escrevo post’s muito longos. Pensei que seria interessante criar alguns textos curtos, independentes e despretensiosos e, intercalá-los com meus contos tradicionais. Não pensem que sou influenciado por críticas, sou sensível, o que é bem diferente de fato. Além disso quantidade não significa qualidade. Muitas vezes o excesso de palavras corrompe a intenção do autor. Acredito que é preciso não apenas inventar, mas”reinventar-se”constantemente – subverter os padrões literário-linguísticos sem hesitação. É preciso ousar para criar. Intitulei estes post’s de fast-food literário*porque são textos rápidos, dinâmicos e de fácil apreciação. Espero que este seja o primeiro de uma série promissora. A fotografia é mais uma cortesia de meu estimado amigo, comandante e camponês, Naki – obrigado over and over:)

sábado, 13 de outubro de 2007

INCÓGNITA

O Acaso é um daqueles sujeitinhos irônicos e destituídos de valores ético-morais; zomba das Probabilidades constantemente - pobres criaturas!. As coincidências são suas amantes devotadas - a Inspiração sua noiva. A estória*que contarei-lhes a seguir atesta minha conclusão:


"Só mais alguns metros, só mais alguns metros"Diasin repetia em silêncio enquanto atravessava o labirinto de escadas e corredores da antiga estação”Incógnita”. Após sete minutos incontáveis, Diasin enfim alcançou a plataforma de embarque. Observou apressadamente os arredores; não havia ninguém ou nada ali, exceto um banco de madeira velho e vermelho. O desgaste da tinta e a corrosão da madeira atingira um estágio irreversível. Quantas pessoas sentaram-se ali? Quantas esperaram minutos, horas, até dias por alguém? Quantas juras de amor incondicional àquele banco velho ouvira antes de ficar completamente surdo? Diasin imaginava quantas indagações sua imaginação ainda poderia conceber. Assim permaneceu, imóvel, por alguns instantes até voltar sua atenção para os trilhos desnivelados. Pareciam cansados de uma longa viagem. Passaram-se trinta minutos e Diasin permanecia estático – nada rompera aquele estado. Ele então enfiou a mão no bolso da calça, pegou algumas moedas sem valor da algibeira e, atirou-as lentamente nos trilhos. Ouvia atentamente o tilintar agudo da queda e bocejava durante o interim. O espetáculo já lhe entediara quando de repente, esgueirou seus olhos na direção do banco velho abandonado – ele não estava sozinho. Ajeitou os óculos com o dedo indicador e, incrédulo, constatou que havia mais alguém ali - uma figura demasiado peculiar por assim dizer. Tratava-se de uma jovem de estatura mediana, magra, cabelos curtos e negros, com duas pedras de ônix no lugar dos olhos, as pálpebras tingidas de âmbar; logo abaixo da esquerda havia um kanji saliente, impresso à nanquim provavelmente; tinha o nariz e os lábios finos e a pele alva como nuvens preguiçosas de um dia ensolarado. Um colar com um pingente na forma de adaga, o vestido negro até a altura dos joelhos, as luvas pretas de cetim, a meia-calça curiosamente desfiada e as sapatilhas num tom púrpura extravagante, lhe conferiam características exóticas e notáveis. Ela não estava sozinha. Um violino cuidadosamente envernizado dormia tranqüilamente em seu colo - o arco contava-lhe histórias até que adormecesse. Diasin fitava a figura da estranha jovem enquanto desconfiava dos próprios sentidos. Aquilo era surreal, pensava consigo. A jovem então levantou-se, pegou o violino pelo braço, caminhou lentamente na sua direção, aproximou-se o suficiente e, disse-lhe num tom de voz que oscilava entre o suave e agudo, que reconhecia o livro que ele carregava. Um livro repleto de mentiras bem-contadas e páginas devoradas por traças. Ela resolveu abruptamente indagar-lhe:


- Para onde vais cavalheiro?

- Para”Algum Lugar”minha gentil dama, entretanto, ainda não sei como chegar até acolá – o tom de voz de Diasin desapontaria um ouvinte mais sensível.


- Posso ajudar-lhe se quiser, afinal, meu destino fica pertinho daí – a jovem parecia convicta decerto.


- E poderia recusar uma oferta tão aprazível? – Diasin parecia satisfeito. A jovem sorriu por um instante e prosseguiu:

- De onde vens afinal?


- De algum lugar longínquo – os olhos de Diasin fitavam os próprios sapatos ao término da resposta.


- De fato tens coragem, pois viestes de tão longe e nem ao menos sabes para onde vais ! – a expressão de admiração desajeitada da jovem era digna de simpatia irrestrita.


- Não sei...Talvez seja apenas tolice – Diasin ansiava pelo trem como nunca agora.


- Tolices exigem uma grande dose de coragem – respondeu irresoluta a jovem.


Antes que houvesse tempo para a réplica(ainda que houvesse parecia impossível concebê-la)o diálogo foi interrompido pela chegada do trem. Diasin sentou-se ao lado da jovem e observou pela janela o banco velho enquanto abandonavam a antiga estação. Notou que esquecera alguma coisa. Deixara suas dúvidas ali.


17/12/1913


NOTA*: A garota, o violino e a estação existem de verdade. Como sei? Hmm...Digamos que eu estava acolá=)


ADENDO – AGRADECIMENTOS, AFINS E BATE-PAPO BALELA COM O AUTOR

Há uns 30, 40 ou 50(medidas quantitativas espaciais indefinidas –“incógnitas”)quilômetros de onde moro, existe uma antiga linha de trem abandonada. Imaginei que fotografar os trilhos dela seria o ideal – que eles expressariam a idéia de incerteza com relação ao futuro – que delineariam o conceito de Destino(Acaso)A atmosfera desolada do ambiente decerto tem um apelo estético irrefutável. No entanto, optei por esta fotografia, que pertence ao acervo de um amigo que mencionei no adendo de”Amantes e Opostos”. Eu, que a princípio imaginei trilhos enferrujados com o aspecto sépia ou em preto e branco, descobri que usá-la seria uma ótima oportunidade de abandonar, ao menos uma vez, todas as idéias preconcebidas que utilizo na construção de meus post’s. Gostei bastante do resultado. Trata-se de uma estória de época, o que causa um choque interessante entre imagem e texto – uma antítese pitoresca diria. Agradeço ao comandante(Naki), que apesar de estar acometido por uma crise temporária de”Parkinson”(vide a(in)definição da fotografia – hmm...Gosto do aspecto ocasionado casualmente rs), tirou uma fotografia, senão magnífica, digna de uma observação cuidadosa. Obrigado mais uma vez, caro amigo=]”THAT’S ALL FOLKS!”(sempre quis dizer isso!rsx)

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

PREFÁCIO

Durante minha estadia numa província escandinava, conheci uma bela e jovem camponesa. Disseram-me que no campo encontraria a inspiração necessária para a conclusão de meu segundo livro(Espelho Submerso)Não mencionaram a formosura de uma habitante da região. Este encontro lembraria-me o que anos incautos de civilização me fizeram esquecer.
Todos os dias, logo que o Sol acordava e espreguiçava-se nas árvores senis do bosque da província, a jovem camponesa saía da casinha de madeira onde morava sozinha, pegava uma trouxa de roupas, sentava-se na beira de um riacho próximo e começava a cantarolar uma canção triste - bem baixinho, enquanto esfregava a anágua de um vestido branco. Parecia uma ninfa desolada. Após dias observando, encantado, a melodia belíssima da canção e, tomado por uma curiosidade inquietadora, não pude resistir; aproximei-me, fiz uma breve saudação e resolvi enfim indagar-lhe:

- Por que todo dia vens sentar-se na beira desse riacho e cantarola a mesma canção, senhorita?

- Porque perdi algo, senhor - respondeu serenamente a bela jovem. As mãos dela esfregavam compulsivamente a mancha escura no tecido.

- Perdoe minha ousadia, mas o que perdestes senhorita? - aquilo parecia incompreensível para mim. A jovem virou-se de costas para mim, colocou os pés na água, segurou o chapéu que um minuano matreiro ameaçava raptar:

- A minha Auto-Estima - seus olhos fitavam o Infinito numa expressão deveras melancólica.

Foi então que percebi o quão a jovem era bela, pois as águas límpidas do riacho refletiam meticulosamente sua graciosidade - ela ofuscava a sombra de peixes desavisados. A jovem tinha a pele alva, nariz e lábios delicados, as madeixas púrpuras cobertas por um chapéu de palha decorado com pedrinhas anis; usava um vestido amarelado, decerto banhado em trigo e os pés estavam completamente nus. Os olhos verdes exibiam tons que oscilavam conforme o humor e a incidência da luz. Ocultavam intenções incógnitas de fato. Prometi que ajudaria-lhe a encontrar o que perdera sem ao menos fazer idéia do que procurava. Ela então hesitou, seus olhos adquiriram um tom esmeralda fugaz, doravante voltaram-se para mim. Os lábios delicados, lentamente acompanharam o movimento sinuoso deles - culminaram num sorriso radiante. Naquele instante nada mais importava para mim...Nada. Descobri que sua Auto-Estima não afogara-se afinal.

A Pamela, dona do sorriso e os olhos, pertence esta estória.


ADENDO - AGRADECIMENTOS, AFINS E ROMANTISMO


O título original do conto é Espelho Submerso. Intitulei o post de”Prefácio”apenas por brincadeira. Trata-se do prefácio de um livro que nunca existiu, nunca foi ou será publicado - ou há muito foi esquecido. Esta é a única estória que escrevi em primeira pessoa. Fiz algumas alterações no texto original – agreguei alguns elementos novos e introduzi uma frase inédita no final. Acredito que o texto ficou mais conciso, uma vez que o original estava repleto de pontas soltas(incongruências logísticas)Definiria-o como uma espécie de mito de Narciso às avessas. Prefiro escrever em terceira pessoa, afinal, assim isento-me da responsabilidade oriunda do conteúdo(risos)Admiro a coragem do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, que notabilizou-se pelo uso de uma narrativa em primeira pessoa, repleta de explorações anímicas auspiciosas e, não obstante, demasiado perigosas. Tudo isso muito antes de Freud estabelecer os rudimentos da psicoánalise. Inclusive, a verve romântica exacerbada da estória, deve-se em parte ao apreço que tenho por Ligéia, Morela, Berenice, Annabel Lee, outros contos e poemas românticos do autor. Também há uma referência as duas irmãs órfãs, Clara e Guida, protagonistas do romance”As Pupilas do Senhor Reitor(Julio Dinis)Lembro-me vagamente que as duas lavavam roupas num riacho, enquanto cantavam, encantavam e contavam suas desventuras amorosas. Se vi a novela? Não, não vi!(risos)Não assisto novelas¬¬. Porém li o romance homônimo. Não sou um discípulo de Lord Byron, mas esforcei-me para preservar as características típicas do romantismo. Se eu fosse escritor, viveria na Europa ou qualquer lugar frio, escreveria romances, poemas e canções de amor, seria escravo da boemia e morreria jovem, muito jovem! Na aurora da vida. Todavia, não sou e às vezes me pergunto se ainda dá tempo. A porta de emergência está entreaberta. Agradeço ao Júnior, companheiro de trabalho e ouvinte de meus devaneios cotidianos, que gentilmente cedeu-me a fotografia utilizada no post e ao Andrei da Foto Studio Paulinho, que escaneou-a e fez pequenas alterações na estrutura e coloração(afinal, eu não poderia esperar por algumas décadas¬¬), seguindo as exigências excêntricas de um certo Mr. Faraway . De fato, Andrei realizou um trabalho minucioso . Agradeço a paciência de ambos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

FULANO, BELTRANO E SICRANO E O TEMPO

Fulano, cambaleante e paulista,
Atravessava a pista;
Bebera outra vez.
Tropeçava nas guias, pernas e vias
Vítima da embriaguez.
As idéias turvas, obscuras e nauseantes,
Ameaçavam sair pela boca a qualquer instante.
A bebida arrancara seu juízo,
Desvanecera seu equilíbrio
E nos transeuntes provocava risos.

Fulano não sabia, Beltrano não via, Sicrano se escondia...

Fulano, pai de família,
Bebia noite e dia
Sempre se metia em frias
Freqüentava a delegacia.
Esbravejava com o delegado:
- Doutor, não sou culpado!
E que não sabia o que fazia
Que aquilo tudo era covardia.
Acordava ao meio-dia
À noite não dormia.

Fulano não sabe, Beltrano não vê, Sicrano se esconde...

Ah Fulano! Um tremendo fanfarrão.
Oferecia pinga de alambique aos santos,
Aos anjos da guarda dava um trabalhão
Enquanto a mulher queixava-se aos prantos.
O vício era um indício
De algo estava errado
No fundo de um copo raso
As alegrias tinham prazo.

Fulano não saberá, Beltrano não verá, porque Sicrano se esconderá...

Fulano estava pele e osso
Afogava-se num copo cheio de mágoas
Chegara ao fundo do poço
Mas não havia água.
Fulano, então
Perdera a razão
Dizia para si mesmo
(“Não quero mais viver, não!”
“Viver pra quê?!”)
Esta indagação, a fulano, que também era João
Ninguém soube responder.

Fulano é alguém,
Beltrano e Sicrano também
João Ninguém.
Assim, haja o que houver...
Etcétera, etcétera e tal.
A Sorte escolhe quais-quer*
Esqueçam o plural!.

NOTA*: O hífen no quaisquer é proposital. Evitem acidentes ortográficos; façam de propósito;]


ADENDO – AGRADECIMENTOS, AFINS E POESIA

Pensei em postar os seguintes versos:”batatinha quando nasce, esparrama pelo chão. Menininha quando dorme, põe a mão no coração”. Todavia, pareceram-me familiares. Muito familiares. Desisti da idéia!^^’(risos)Não costumo escrever poemas. Embora trechos de meus contos exibam rimas e rítmica, não premedito; são versos ocasionais, quiça”acasoniais”!(risos)Este poema foi escrito de improviso. A literatura de Cordel, a verve poética Drummondiana e minha incompetência com os versos, serviram de base para sua construção. A métrica é imperfeita. Diverti-me com minha inexperiência estética durante o processo. Preciso praticar bastante. A estética empregada na poesia exige uma sensibilidade e disciplina absurdas. A imagem utilizada chama-se”Some Sad Guy” e pertence a galeria de Sally. Além de escrever poemas belíssimos, ela é capaz de criar o que denominei”Poesia Visual”. Gosto muito da ilustração. Ela expressa uma melancolia pungente, perturbadora e fascinante. O traço de Sally é extremamente criativo e, sobretudo, tocante(vide”The Dancer Without Legs” – agora inexplicavelmente renomeada como”Dancer”¬¬)Exagero? Hmm...Talvez. Desculpem-me. Minha admiração pela obra dela desconhece aquilo que chamam de”bom senso”. E dizer que ela faz tudo isso entre um milk shake, uma trufa de amarula e outra(esqueci alguma coisa, HONEY-you-are-ROCK?!rsx)Muito obrigado”mais uma vez”, Nah:)

P.S: Di’stante é apreciador incondicional do poeta lusitano Fernando Pessoa. Enquanto eu, um sonhador passional, continuo ano a ano sonhando à toa.
Para maiores informações sobre poesia visual visitem:http://www.saaally.deviantart.com/gallery/?offset=0

domingo, 2 de setembro de 2007

ANTES DA CHUVA*

Away estava preocupado. Já fazia duas horas que sentara-se ali. O dia quente e seco causava-lhe um desconforto visível e, observando à sua volta, não podia deixar de sentir uma ponta de inveja dos peixes coloridos do aquário ao lado. Perguntava-se por que não ligavam o ventilador. Olhando para os lados mais uma vez, viu alguns homens tomando cerveja alegremente e discutindo futebol. Embora nenhuma das atividades parecesse-lhe muito interessante, divertia-se imaginando o desdobramento da conversa. Num dos cantos, perto do balcão, um homem embriagado, sem camisa e descalço, tentava inutilmente convencer o balconista a vender-lhe bebida fiado. Away virou-se, encontrou as mesas vazias, com um menu solitário em cada uma delas e, na última, a mais afastada da entrada, havia uma azeitona acompanhada de um palito quebrado. Ele estava só. Não importava para onde olhasse. O copo com água já estava acabando – era o terceiro. Ouvia o locutor da rádio local aconselhar os ouvintes a darem uma volta no parque, clube ou tomarem um sorvete com seus respectivos entes queridos. A previsão do tempo não era nada animadora para os próximos dias. Faria muito calor e a umidade relativa do ar cairia vertiginosamente. Away não aceitava conselhos de estranhos, mas parecia cruel recusar quando imaginava flocos de neve cobertos com chocolate. Encarava o copo de água, pensava numa maneira de fazê-lo durar mais, uma vez que o balconista que o observava parecia bastante impaciente. Pegou o copo, hesitou um instante e, de um só gole, matou a sede e um pouco de seu orgulho também. Perdera a batalha. Acenou com um guardanapo de papel para o balconista, como se hastiasse a bandeira branca de rendição. O balconista com um tom de voz inconfundivelmente cínico, indagou-lhe:

- Mais um copo de água amigo? – o desdém no seu olhar era evidente.

- Não, não obrigado.Gostaria de um cartão telefônico – Away era um bom perdedor.

- 20, 40, 50 unidades?

- Hmm...Se eu comprasse o de 20 e usasse somente a metade dos créditos, vocês me reembolsariam?

- Acho que não amigo – o balconista não parecia tão confiante dessa vez.

- Foi o que pensei. Um de vinte unidades por favor – Away acertara-lhe com um tiro silencioso. ”A batalha só termina quando acaba amigo”, Away não cansava-se de repetir em silêncio enquanto deixava para trás um boteco, algumas moedas e um homem atordoado.

Away entrou numa cabine telefônica sem se importar com os cartões publicitários, retirou um papel amassado do bolso e discou os números nele pausadamente. Enquanto ouvia o telefone chamando, lia baixinho o anúncio de uma loja de conveniências. Away estava impaciente. Os ruídos da ligação já despertavam-lhe fortes sinais de irritação, mas ele procurava conter-se. Após um minuto uma voz sonolenta atendeu o chamado:

- Hã...Alô?

- BOM DIA! – Away procurou não economizar simpatia.

- Ah, é você...Que horas são? – Nah não poupava apatia.

- 11:30 da manhã.

- O QUÊ?! 11:30 DA MADRUGADA QUER DIZER! Espero que tenha uma boa desculpa Away! Aliás, você não tinha que trabalhar?

- É...Tinha – Away contemplou por um instante o silêncio, logo prosseguiu:

- Acho que agora sei porque ligações telefônicas são tão caras.

- É verdade?! Por quê?! – Nah indagou de maneira ingênua.

- Eles não cobram apenas o tempo gasto. Adicionam os ruídos também – os ouvidos de Away ainda doíam.

- HÁHÁHÁ! Eles cobram impostos pelos ruídos?! – Nah riu por um tempo – parou assim que percebeu o quão Away parecia aborrecido com a piada. Os ouvidos dele não achavam-na engraçada.

- Que tal tomarmos um sorvete? - disse Away.

- Tá tentando me subornar, é?!Você é estranho!

- O que acha? – Away sorria.

- Do suborno ou do sorvete?

- Hehe...Do sorvete.

- Só se for um de baunilha bem grande e você me der a casquinha do seu, topa?! Away pensou, fez algumas indagações inaudíveis, mas logo aceitou as condições. Away não sabia a diferença entre um sorvete de flocos e um de baunilha, porém achou desnecessário comentar.

- Onde você tá?

- No meio do Nada, mas tem bastante gente aqui – Away esforçava-se para não rir.

- Tá bom Sir.Engraçadinho, espere aí que já vou. Só deixe-me desamassar a cara e colocar as meias, tá?

- Tudo bem – Away colocou o telefone no gancho, pegou um cartão decorativo da cabine e caminhou em direção a um sebo próximo.

Nah levantou-se depois de convencer a Preguiça que era um fato isolado. Nah voltaria cedo, antes que ela fosse embora. Abriu o guarda-roupa, colocou uma saia preta vitoriana, uma camiseta branca com os dizeres”A Bored Girl”em negrito, as meias listradas em preto e branco; calçou a sapatilha preta com salto alto, pôs o colar cujo pingente era um retrato antigo da avó falecida, uma pulseira preta; arrumou rapidamente os longos cabelos negros, prendendo parte da franja com uma presilha azul, por fim colocou óculos rayban. O sol serviria de pretexto para ocultar os olhos inchados(“você é uma garota esperta”, pensava consigo)Pegou a bolsa e um guarda-chuva preto; despediu-se de Dorothy(uma guitarra strato vermelha)pendurada na parede, apagou as luzes e saiu em busca de Away.


NOTA*: O título original deste conto é”Nah Chuva”, entretanto, resolvi criar um subtítulo e dividi-lo em duas partes(não necessariamente homogêneas)O intuito é facilitar a leitura, tornando-a mais atraente; menos efusiva e extenuante. Também serviu de pretexto para a inserção da peculiar fotografia acima. A idéia de dividi-lo até instigou-me a criar uma trilogia(algo a la Matrix e Senhor dos Anéis)A seqüência seria o originalíssimo”Depois da Chuva”^^ - o que acham da idéia?!(risos)

NAH CHUVA

Away folheava um livro grosso, com uma capa dura verde e empoeirada, tomando cuidado para não desprendê-la das folhas amareladas. Estava mergulhado em sonhos e divagações:

- Tem bastante gente aqui mesmo – disse uma jovem carregando um guarda-chuva preto. Como não houve resposta, ela então alterou o tom de voz:

- EI, EI MR. FARAWAY?! A voz dela finalmente trouxe-o à tona.

- Sim, sim!Hesse, Nietzsche, Rosseau, Voltaire, Dostoiévski, Pessoa, Poe...

- Podemos ir?

- Ah claro! – Away parecia refeito do transe literário.

Enquanto passavam por ruínas de um prédio abandonado, Away observava curioso os trajes da jovem. O movimento sinuoso das pernas dela, ressaltavam as meias listradas e longas. Ficou surpreso ao constatar que ela empunhava um guarda-chuva preto:

- Sabe, pensei numa coisa agora.

- Hmm...O quê? – Nah parou de caminhar.

- Talvez fosse melhor esquecer o sorvete. E se estivermos contribuindo para o aquecimento global?

- Hã? Como? – Nah não acreditava no que acabara de ouvir.

- Este calor insuportável! Aposto que tem dedo da Nestlé aí! – disse Away enfático.

- Eles colocam CO2 na fórmula do sorvete? – Nah indagou com um cinismo delicioso.

- Não, mas se estão lucrando, certamente conspiraram para isso – os olhos dispersos de Away deixavam dúvidas sobre a teoria.

- Você é paranóico!

- Você disse que eu era estranho.

- Estranho e paranóico. Sente-se melhor agora? – Nah não conseguia disfarçar o sorriso entre os lábios.

- Vamos, venha! – Nah puxou Away pela mão bruscamente.

- Vai se queimar todinho se continuar debaixo deste sol – Away insistiu:

- E a Antártida? Os pingüins? E todos àqueles icebergs reduzidos a cubos de gelo?

- Pára com isso! Você não é Atlas! Se por acaso restasse apenas dois cubos de gelo, eu ficaria feliz. Away exclamou compulsivamente:

- VOCÊ É LOUCA?! ESTOU DIZENDO QUE ESTAMOS FRITOS! É SÉRIO! – Nah, serena, lentamente respondeu:

- Sei disso...Eu ficaria com um deles – fez uma pausa e em seguida disse:

- Daria o outro pra você – Away sentiu-se anestesiado pelas palavras de Nah. Olhou para as mãos dela, pensou um pouco e indagou:

- Por que o guarda-chuva? Se a intenção era se proteger do sol, não seria melhor uma sombrinha? - Away lutara o quanto pôde, mas sua boca traiu seu bom senso.

- É porque vai chover. Não sei...Sinto! – Nah gargalhou quando viu a expressão confusa de Away. Ele olhou para o céu. Não havia uma única nuvem. Desconfiou seriamente do sexto sentido feminino.

- Chegamos – Nah apontou para uma sorveteria no fim da rua. Os dois entraram nela, sentaram-se em cadeiras opostas, pediram o combinado e enquanto esperavam, Nah desenhava sóis, luas, lobos, dragões e princesas no verso do menu – usava um lápis de olho que carregava na bolsa. Nah tentava explicar para Away que Crunch era um tipo de cereal; não uma onomatopéia como ele imaginara. Também explicava as diferenças entre uma bola de sorvete de flocos e uma de baunilha, usando exemplos práticos, pois para ela se Away não conseguia distinguir o sabor de essências tão simples, como apreciaria os sabores da vida? Away ouvia atentamente as explicações sobre as diferenças das bolas de sorvete, entretanto, para ele era mais divertido equilibrá-las sobre a casca – sentia-se um verdadeiro artista circense. Estava feliz. Após experimentarem todas as novidades da casa(inclusive um sorvete feito com abóboras púrpuras e limão), resolveram que já era hora de partir; afinal, o Sol já vestira seu pijama. Durante a volta, Away não escondia sua satisfação. Ela era nítida, evidente, saltava aos olhos; sobrepujava os muros de qualquer preocupação.

Away e Nah pararam numa travessa, ela retirou os óculos, trocaram olhares por alguns segundos, riram timidamente, até que Away iniciou o ritual de despedida:

- Quanto te vejo de novo?

- Depende. Quanto tempo leva um”até breve” – Nah sorriu indiscriminadamente.

- Tome. Acho que vai precisar – entregou o guarda-chuva para Away. Ele pegou, balançou a cabeça e ficou ali, parado, observando as meias listradas se afastarem, levando consigo a bela e encantadora jovem. Colocou as mãos no bolso da calça, caminhou até o portão de uma catedral gótica próxima, olhou para o relógio no alto da torre. Não havia nenhuma indicação de”até breve”nele. Voltou para a rua, cabisbaixo, quando de repente sentiu alguma coisa fria cair no seu rosto. Tocou-o, abriu a palma da mão e, impressionado, viu que a coisa fria era água.Logo os pingos de água se transformaram numa chuva espessa, refrescante e majestosa. Away então abriu o guarda-chuva, entregou a um velho mendigo sentado na calçada, abraçou a Chuva e apressou o passo. Até breve não estava tão longe.


ADENDO - AGRADECIMENTOS, AFINS E DECLARAÇÕES

As duas fotografias usadas neste conto são de autoria e propriedade de uma amiga e amante(ou vice-versa^^'...rs), agridoce, autodidata, preguiçosa, tímida, nostálgica, crítica, incentivadora(minhas orelhas ainda doem, viu?!x), pensativa, distraída, ambígua(indubitavelmente), agnóstica, tresloucada, letárgica, perfeccionista, filósofa e filóloga(afinal, criastes um dialeto próprio e, além de writing and speaking english very well, domina como poucos o élfico – decerto sua língua-mater), espontânea(P**** mano!¬¬rs), mas sobretudo uma senhorita”estranhamente”encantadora; alguém cuja a inteligência, graciosidade e criatividade intimida, encanta e inspira respectivamente. Muito obrigado pelo “Antes”, “Nah”e quiça o”Depois da chuva” - >***** Sally!xD

Para maiores informações visitem:
http://www.enkrateia.blogger.com.br/

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

AMANTES E OPOSTOS

Antes da vida criar forma e as primeiras criaturas habitarem este planeta, o astro-rei era casado com a Lua, mas devido ao comportamento possessivo dele(o sujeito é esquentadinho), a bela dama o abandonou. Dizem as más línguas que a Lua se apaixonou por uma estrela demasiado formosa e sedutora que conheceu perto dos anéis de Saturno. Verdade ou mentira, o fato é que naquele ano não houve uma noite sequer. Os dias foram perpétuos e quentes, muito quentes!. O astro-rei precisava extravasar sua frustração afinal. Do relacionamento conturbado entre a bela dama e o astro-rei, restou apenas um casal de filhos e um acordo de separação denominado dia e noite. O filho mais velho foi batizado de Crepúsculo. Ele puxara o comportamento soturno da mãe. Gostava de flertar com as Damas-da-Noite, que tímidas, exalavam um perfume lânguido e riam faceiras de seus galanteios. Também colecionava lusco-fuscos raros. Já a mais nova, Aurora, era vaidosa e mimada, decerto resultado do carinho exacerbado do pai coruja. Aurora brincava com galos cata-ventos e pipas amarelas; bebia orvalho condensado e maquiava-se com pólen de cerejeiras, no entanto seu maior desejo era que o pai comprasse-lhe um arco-íris de brinquedo. Apesar do divórcio nada amigável, ambas as partes concordaram em dividir a custódia dos filhos. O eclipse solar ou lunar é o reencontro dos ex-amantes – uma recaída temporária. E o Solstício? Como surgiu? Hmm...Realmente não se sabe. Visitem os anéis de Saturno. Aposto que eles possuem histórias para contar – ah, se possuem!.


ADENDO – AGRADECIMENTOS, AFINS E PROVOCAÇÕES

A fotografia acima é do acervo pessoal de um grande(mede 1,80 mais ou menos) amigo, Franco(no nome), bipolar, biólogo(e salva-vidas de cágados), crítico feroz, inquisidor(não cansa-se de me pôr na fogueira), amador e fotógrafo de cartões-postais(nessa ordem mesmo), camponês, socrático, canhoto(não fala"direito"!OPS!Digo com o hemisfério cerebral direito¬¬), egocêntrico(sim – ele acredita veementemente que é virtuoso, afinal, a auto afirmação é importante), pentelho, dançarino, pastor(não, ele não é protestante, tampouco cristão), poeta e shinigami, amante da primavera(e da Gertrudes e da Cotinha...),quixotista, devaneador(o mundo de Bobby é pequeno para ele), falastrão(sua verborragia é comparável a de Mervin Pumpkinhead)varredor de folhas e outras características que a face esculpida em cerne impede-nos de ver. No entanto, possuí suas qualidades ocultas(os que descobriram levaram o segredo para o túmulo¬¬)Enfim, é o melhor(e único)fotógrafo de paisagens que conheço; alguém que respeito e admiro consideravelmente(não achou que pegaria leve contigo, achou?!)Caro comandante(vulgo Naki), minha palavra com oito letras começando com”O”!:)

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

ELA

Um homem e algumas mulheres vestidas de branco desciam as escadas apressadamente. A voz dele destacava-se entre os cochichos das mulheres:

- Procurem-na no jardim outra vez. Ela não pode ter ido muito longe! – dizia o homem alto, sem rosto, vestindo um jaleco branco. Passara-se quatro horas agora.

Existe um lugar onde a Esperança desapareceu. Ninguém sabe para onde foi. Ninguém a viu, tampouco se importa. Não há muros, sequer barreiras tangíveis. Um lugar onde o esquecimento é absoluto. A Lembrança é muito pouco – a Felicidade é quase nada. Um lugar onde os habitantes de”Utopia”enterram seus mortos: sonhos, desejos, lembranças, esperanças e a felicidade de outrora jazem ali. Um lugar chamado”Nowhere”. Estranhamente as ruas de Nowhere não possuem nomes. Também pudera – não precisam. Elas são todas iguais e sempre levam ao mesmo lugar. Não há placas, nem uma direção a ser seguida. Muitos se perderam, porém alguns, poucos e privilegiados decerto, ali enfim se encontraram. Distância é uma palavra que não significa nada ali. Mas os nativos gostam de usá-la. E não era difícil vê-los elaborando maneiras de medí-la - um esforço inútil, vão e tolo. Sofriam do mal”positivista”há gerações. Num lugar assim Ela sobrevivia há treze anos. Pois é fato dizer que viver e sobreviver não são a mesma coisa. A facilidade é benquista. Não coça ou pinica como as dúvidas. Estas sim reais, entretanto,
destituídas da praticidade da razão. Ela estava cansada. Pensava em fugir para qualquer lugar onde houvesse o que achar. Faz-de-Conta não ficava muito longe, mas já haviam tantas pessoas ali, pensava consigo. Não estava lá. Sentia-se estranha. A sensação não era passageira – ela dirigia a sua imaginação. Enquanto escondia-se das outras crianças, Ela encontrou um anel velho e enferrujado, com um brasão encrustado numa pedra(uma pedrinha cinzenta e opaca durante o dia, mas que exibia um brilho azul néon resplandecente a noite), no sótão, abandonado ao lado de caixas de papelão e ferramentas rústicas. O minério responsável pelo estranho fenômeno era desconhecido em toda Nowhere. Havia uma inscrição nele similar a um hieróglifo. Ela nunca vira aquele símbolo ou o que quer que fosse antes; logo, fazia expressões engraçadas enquanto tentava decifrá-lo. Indagou a sua mãe sobre o significado dele. Não obteve resposta. Irresoluta e teimosa, insistiu, mas o máximo que conseguiu foram palavras desconexas. Talvez o pai pudesse lhe ajudar - ledo engano. Ainda ressoava em seus ouvidos a exclamação:”
Oras!Deixa disso menina!Estas tolices só servem para deixar sua cabecinha confusa!Hmpf!” – seu pai esforçara-se para não rosnar enraivecido. Todavia, isso não fora suficiente para arrefecer seu ânimo, afinal, ainda restava sua avó. Provavelmente a experiência acumulada ao longo dos anos, seria de vital importância agora. No entanto, sua avó esquecera o significado da inscrição. Infelizmente ela não era a única. Não havia uma única criatura que soubesse lhe explicar o significado do hieróglifo. Havia até àqueles que se sentiam ofendidos com a indagação(anciãos que tomados pela estagnação intelectual e monotonia local, praguejavam contra o que consideravam, manias perniciosas dos jovens da época). Haviam criado raízes e estavam demasiado velhos para mudarem. Mudança significa renovação – ao menos possuíam um pretexto Ela pensou. Abatida, Ela suspirou, seus lábios exibiam um misto de ironia e tédio – decerto resultado do sorriso camuflado pelos dedos esguios no rosto. Nos seus olhos tingidos de castanho amêndoa, podia se ver o reflexo daquela inscrição difusa que encontrara dias atrás. O Tempo movia-se na ponta dos pés – ele não passava; durava!. Quando Ela caminhava para a sala do desassossego, uma criaturinha atravessou o corredor fazendo um som muito esquisito. Parecia-lhe familiar...Era familiar. Aproximou-se e logo”Sad”estava debaixo de seus pés fazendo cócegas com o bico. Pegou-lhe pelo dorso, alisou-lhe carinhosamente, colocou-lhe no parapeito da janela e, enfática disse:- Sad o que significa esta inscrição? – Ela olhava fixamente para seus olhinhos. Sad tinha olhos pequenos, de um negrume e brilho similar ao de jabuticabas maduras. Sad assustou-se, fez alguns sons inaudíveis e incompreensíveis – era mudo de nascença; não cantava e não aprendera a voar ainda. Sad parecia desconfortável com sua indagação. Ela gentilmente agradeceu, pegou-o na mão e beijou-lhe a cabeça. Naquele fim de tarde Ela sonhou acordada. Devaneios levaram-na a uma terra desconhecida. Na entrada havia um arco e o que parecia ser um guarda. O guarda usava um casaco azul com lapelas douradas e um chapéu-coco verde-musgo. A figura dele era demasiado extravagante decerto. Ele pedia gentilmente para os viajantes, já cansados pela extenuante viagem, que jogassem fora tudo que traziam nas mochilas pesadas: sonhos, desilusões e esperanças, nada disso poderiam carregar se quisessem seguir adiante. Qualquer coisa que pesasse mais que a Liberdade não seria permitido. Em certo momento do sonho, Ela viu o guarda fazer-lhe uma reverência honrosa e desaparecer numa névoa densa. Depois daquele dia Ela ficou meses dormindo.Embora estivesse acordada, as vozes do mundo externo não lhe alcançavam. Os pais adotivos temiam que seu maior segredo fosse revelado. Ela descendia de uma linhagem nobre. Era a décima sétima representante de uma antiga dinastia. Aflitos com o estado catatônico dela, consultaram médicos, curandeiros, até supostos”feiticeiros”sem muito sucesso. Ela parecia não se importar – podia vê-los, mas não podia ouví-los. Mais tarde não conseguiria vê-los também. Sad arrepiava-se, ensaiava protestos e, cabisbaixo voltava para o parapeito da janela. Cinco anos se passaram, Ela recobrou a consciência, porém não era mais a mesma. Escondia algo. Notou diferenças sutis na decoração do seu quarto. Caminhou ainda sedada até um corredor com paredes brancas e cheiro de desinfetante, chamou por alguém, mas ninguém respondia. Tonta sentou-se no chão, os cabelos cobriram seu rosto e, com espanto e alegria, contemplou maravilhada o anel no dedo franzino e pálido. Algumas horas depois Ela estava outra vez no quarto. Não lembrava-se como chegara ali. Abriu as janelas e ficou horas à fio ali, inerte, esperando alguma coisa – observando as cores do crepúsculo. Via insetos multicoloridos sobrevoarem o telhado e, como se estivesse vendo todas essas coisas pela primeira vez, sorria. Esperava o dia em que aprenderia a voar também. Ela passava as manhãs assim; as tardes dançando descalça e sozinha, copiando caprichosamente os rodopios repetitivos da bailarina presa à caixinha de música. À noite abria as cortinas do quarto e desenhava constelações usando o dedo indicador. Às vezes tocava as paredes de vidro, encostava o rosto nelas, e sorria para a jovem encantadora do outro lado. Um dia enquanto Ela mexia uma xícara de café, ouvindo o tic-tac entediante do relógio cuco, assimilando o aroma do líquido fumegante e identificando padrões em seu movimento, ouviu um barulho na janela. Havia uma ave negra no parapeito. Ela se aproximou e disse-lhe:

- Poderia me emprestar uma de suas penas, caro amigo?

5:30 da tarde eles entraram no seu quarto. Estavam atrasados. Não havia sinal de sua presença. A janela estava aberta; havia marcas de pés no parapeito e o café na xícara estranhamente permanecera quente. Vasculharam o armário, as gavetas, até encontrarem um bilhete debaixo da caixinha de música. O nanquim ainda estava fresco. Nele Ela escrevera: ”Voltei para casa”. Olhando o canto do verso fizeram uma nova descoberta. Ela não era ela. Ela era Ana Maria Paula Mariana, Ana Júlia Maya Juliana, Ana Lúcia Ângela Luciana, Ana Flávia Alessandra Alana, Ana Rosa Maria Rosana, Ana Flor Bela Adriana, Ana Maria Cristina Cristiana e tantas outras Anas, Marias e mulheres que buscam uma identidade.