Foi no mês de todos os santos, domingo, duranteumfestivalemquecrianças fantasiadas trocavam travessurasporgostosuras. Uma carruagem desgovernada atingiu umposte; libertando os cavalosque perderam os estribos e as estribeiras. Saíram emdisparada, atropelando o velhoSam Hain que passeava distraídopelacalçada. O laudo do legista apontou ”atropelamento poreqüinos ordinariamente adestrados “ como a causa mortis. Xavier foi ao velóriosozinho. Yai estava indisposta. Xavier demorou maistempo do que o habitualpara arrumar-se. O nó da gravata cansava-lhe. Se havia algumsegredo, algoque a maioria dos homens desconhecia e, meiadúzia de gatospingados privilegiados sabiam, eracomo se dar o nó numa malditagravata! – pensava Xavier. Parentes, amigos, funcionários e puxa-sacos, rodeavam o caixãoaberto – onde o defuntodevidamenteapresentável, exibia a testaproeminente, os cabelosralos e grisalhos, e algunshematomas no queixoque o pó de arroznão conseguira apagar. A viúva soluçava alto, amparada peloombro do filhoúnico do casal. No ínterim dos soluços, balbuciava impropérios dirigidos aos estranhos, pobresdiabos, que aproveitavam-se de suador e desgraçaparasaciar a fome; embriagar-se comuísquelegítimo e importado. Xavier hesitava em cumprimentar-lhe. Apesar de tercuidadopessoalmente do envio de coroas e outrospormenores do velório, não sentia-se à vontadecom a situação. Xavier aproximou-se lentamente da viúva, ensaiando uma espontaneidade ensaiada, mas a voz da mãe de Dominique cancelou suapeça. Ela dizia que a novena começaria e pedia aos parentes e amigosmaispróximos, que se reunissem nosfundos da capela. Xavier seguiu, cismado, as senhoras de véunegro, terços e rosáriospelocorredorestreito e molhadoque desaguava perto de umaltar. O filho do Sr. Sam Hain, o advogado e o barbeiro, eram os únicoshomensalém dele ali. É costumeque as mulheres recitem ave-mariasenquanto os homens recitam o pai-nosso. Xavier não estava acostumado. Esqueceram de lheavisar. Suava frio, os olharesreprovadores vinham de todas as direções(“ORASBOLAS, QUECULPA TENHO?! – NUNCA FUI COROINHA, PÔ!”) Xavier gritava silenciosamente. Pálido, olhou para o Cristo crucificado. Procurava a saída de emergência. Uma senhorasisuda, cheia dos ”blábláblás e nhem nhem nhens”, começou a tossircompulsivamente. Xavier aproveitou-se da distração ocasionada pelacrisepulmonar dela, parafurtivamente, num zás-trás, sair dali. Xavier viu o caixãodisperso no meio da massaqueoutrora se juntava ali, aproximou-se, encostou na borda. Fitou o defunto, fixando-se no rosto. A face áustera revelava umhomemquenão conhecia sutilezas. Não tolerava entretantos, poréns e todavias. Dominique Sam Hain foraassimtodavida. Xavier lembrou-se dos tapinhas nas costas, as pilhériasmatinais, as confissões extra-conjugais e todas as coisasque o rei da indústria da morte, o papa dos defuntos, deixara paratrás e queagoraele trataria de devolver. Xavier afrouxou o nó da gravata. Fechou os olhosporumminuto. Abriu-os, mexeu nosbolsos da calça e o terno; encontrou uma moeda. Não bastava para a corrida do barqueiro. As coisas andavam difíceis no inferno, imaginava. Arrancou umbotão do terno de linho emprestado. Talvez bastasse para uma corridaaté o purgatório, Xavier torcia - não sabia rezar. Colocou o botãosobre o olhoesquerdo do defunto. Porfim, pôs a moedasobre o olhodireito. Foi emborasemconversarcomninguém.
Yai sónão superava a vizinhaque acordava de manhãzinha parapedircafé e açúcar emprestado, comumsorriso no rostotãoverdadeiroquanto uma Mona Lisa de Picasso. A estranha chamava-se Joana e tinha uma aversãoinexplicável as consoantes: oiii, ééé, iiii, oooo, uuum compunham a maiorparte do seuvocabuláriosocial. Vestia umrobecurto, vermelho e insinuante, carregava uma xícara e umjornal nas mãos. Trocava de namoradotodasemana – Yai contara. Quando ia para o trabalho, Yai voltava a esbarrarcomela no corredor. Xavier a evitava. Porsorte(claro! Poisnão há melhordefinição obviamente) o elevador enguiçava durante a semanainteira. Uma placa indicava:”Elevador em manutenção"– Xavier descia pelas escadassemolharparatrás - eramelhorcorrer dos riscos. Yai apressada, esbarrava nos outros moradores, desculpava-se comumperdão, despedia-se abruptamente e voltava a apostarcorridacom Chronos. Estava no calcanhar dele outravez. Esgotara seuscréditos no últimomês. Precisava apressar-se e o Tempoeraumtrapaceiro. Yai trabalhava numa clínicamédica, na seção de radiologia há 9 meses. Era praticamente umserviçovoluntário, jáque o saláriomal cobria suasdespesas, no entantofora a melhoropçãoque encontrara. Nãoforadifícilescolher, recém-formada, nãotinha muitas opções. Ali, 6 meses atrás, conhecera Xavier. A princípio Yai dissera para Xavier quecasoele estivesse à procura de umcoração, estava no lugar errado – a seção de cardiologia ficava do outrolado, umpoucomaispara a esquerda. Xavier usou cantadasbregas, presentes e pedantismopara convencê-la do que sentia. Yai não achara-o atraente, ria e, como estava sozinha e o rapazera ao menos engraçadinho, resolveu continuar a história. Uma históriarepleta de vírgulas, parênteses, reticências e travessões. Elaainda guardava na gaveta da cômoda, no meio de calcinhas, envelopes, cartas e cartões-postais, a chapaque continha o raio-x do primeirobeijo deles.
Hoje Xavier cumpriria a promessa. Fora promovido. Ele acreditava que Yai precisava de umanimal de estimação também – convencera-se disso. Todavia, não havia espaçoparamaisumSão Bernardo. Chico ficaria solteiro. Xavier resolveu entãopedirconselhos ao atendente do pet shop, quesolícito, sugeriu-lhe uma iguana. Xavier olhou o réptil da cabeça a cauda, coçou a cabeça:”friodemais!” - emseguida perguntou ao atendente se não tinham nadamenosexótico. O atendenteentão sugeriu-lhe umhamster. Ummamífero tradicional e caseiro. Xavier olhou para as gaiolas, viu umhamster devorando sementes de girassol – do lado, outro, reconchudo, suava na esteira. Aquilo pareceu-lhe engraçado. Faltava alguma coisaainda - nãoeraeste. O atendente acendeu umcigarro, tinhaumchapéu de explorador e tatuagens espalhadas pelocorpointeiro. A girafaazul no bícepsesquerdo destacava-se. Xavier sempre teve sériosproblemascomescolhas. Eleera o X da questão. Passava mais de uma hora na locadora, alugava os filmes errados e voltava paracasa. Encontrava Yai cochilando no sofá, Chico esparramado no carpete, a televisãofora do ar e umbalde de pipocasfrias. Xavier acordava Yai fazendo cócegas na planta de seuspés. Cansada dos constantesatrasos, Yai resolveu ensiná-lo a portar-se diante a escolha de umfilme: bastava que escolhesse um romântico, bonitinho, comumpiano afinado e chuvaqueela daria-se porsatisfeita. Dessa vez Xavier não contaria comsuaajuda. Precisava escolhersozinho(“CÉUS, COMO FARIA ISSO?!) –se até as cores de seuspijamas foram escolhidas porela!?. Quem sabe uma arara, pensou. Yai teria alguémparaalfabetizar, conversar e daralpistetodos os dias – alguémque faria-lhe se sentirimportanteincondicionalmente. Xavier acompanhou o atendenteaté o viveiro, masassimque adentrou o lugar, ouviu consternado araras vermelhas, azuis e amarelas saudarem o atendentecompalavrõesemuníssono – ele parecia bastantepopular. Xavier acabou deixando o pet shop com as mãos vazias e a promessa de que entregariam o aquário e sua moradora, uma estrela-do-mar, no fim de semana. Yai adorou a surpresa. Ficou aindamaisfelizquando descobriu o motivo. Disse que a estrela-do-mar se chamaria Lis. Uma estrelacomnome de flor.Yai não dispensava flores. Já Xavier gostava bastante dos cactosque preservava num vaso de areia; feitocomumpote de iogurte desidratado. Yai não sabia o quedizerparaagradecer. Xavier disse que se elanão dissesse nada, arrancaria as palavras de suaboca à força: tomou-a nosbraços e beijou-lhe e intensamente. Chico olhou para a cena e a estrela enciumado. Nestes momentos, Xavier esquecia o quão incomodava-lhe as abreviaçõesque Yai usava: pra, tá, pra, tô, pra, quê, mor, cê etc.
Yai adorava espuma de cafécom chantily, caramelos, all-star preto de canolongo, cheiro de naftalina, umvestidomarinhocom bolinhas brancas e o broche de São Longuinho, achados num brechó perdido, e dançartangocom a tábua de passarroupas. Xavier preferia cães e o programa de perguntas e respostasque passava sábado à noite. Xavier e Yai dividiam o apartamentominúsculocomumcãoSão Bernardo chamado Francisco. Às vezes, ”Chico" (como Xavier apelidara-o carinhosamente), tinhasurtos de claustrofobia. Umpacote de jujubas, algunsafagos e umpasseio pelas redondezas faziam parte da terapia. Xavier não sofria de claustrofobia, entretanto, escadas rolantes e elevadores provocavam-lhe calafrios. Antes de mudar-se definitivamente, fez várias perguntas a respeito da segurança dos elevadores do prédio. O síndico respondeu com ”claros, pois nãos e obviamentes”. Neste dia, à noite, logoapós a sobremesa, Xavier teve pesadeloshorríveis. Sonhou queratos, inquilinosindesejáveis do 209, aglomeravam-se na forma de uma tesoura; roíam e rompiam o cabo do elevador. “Bom, este foi maisoriginal do queser enterrado vivo, não?!” – rianervoso, enquanto contava para Yai o ocorrido no café da manhã. Xavier realmente detestava elevadores – e balascomgosto de xarope. Yai não gostava de cães. Tolerava-os. Chico costumava confundir os abajurescompostes – mijava neles, molhando o carpete(odiava os persas!) transformando o queantesera uma sala num banheirounderground. Yai ficava cricriquando flagrava-o mordendo, mastigando, fazendo cracks e crecks com os duendes, fadas e bruxas de ceraque ficavam na sala, emcima da mesinha de centro. Ela tolerava as peripécias dele porque sabia que o amor exigia concessões, impunha condições, tinhaseupreço. O dela tinhapreço, nome e pêlos. Xavier prometera-lhe queassimque pudesse, compraria umosso de borracha para Chico num pet shop.