quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

SOBRE ANNA: As Causas e Defeitos

Enquanto afastava-se dos arredores do centro da cidadezinha, Anna sentia que estava cada vez mais perto de si – uma sensação estranhamente agradável. Anna atravessava um beco lúgubre e apertado; nele mal cabia a anágua do vestido preto bordado caprichosamente; cheio de rendas meticulosamente tecidas por aranhas prendadas(na verdade, velhas costureiras, mas Anna insistia em chamá-las assim) O vestido e o coturno preto conferiam um caráter sóbrio, peculiar e anacrônico a bela jovem. Anna parecia uma camponesa saída de algum conto dos“Irmãos Grimm”. Ela não era muito alta, mas o salto do coturno consolava os pezinhos ambiciosos. Decerto, a beleza exótica da jovem era notável. Uma pequena pinta em forma de meia lua logo abaixo do olho esquerdo, realçava tal característica. Um pontinho preto solitário no rosto pálido e inexpressivo. As bifurcações do beco tornaram-se maiores, até acabarem numa viela cercada por casas antigas; aquelas com sobrados decorados com arranjos de flores(um indício da primavera esquecida), fissuras semelhantes a rugas, ervas daninhas e trepadeiras que cobrem os muros. Nas paredes limbo abundante; e a ferrugem avançada dos portões indicavam a senilidade das construções. As casas já eram senhoras. Anna caminhou alguns passos, foi quando ouviu uma voz rouca chamar-lhe:

- Anna! Ei! Para onde vais tão cabisbaixa, filha?

Anna respondeu hesitante:- sei lá! – num misto de sinceridade e aflição - Logo, uma velhinha simpática debruçou-se sobre o parapeito do sobrado.

Eugênia Handsome vivia em Anesthesia há vários anos. Anna não sabia a idade dela – ninguém sabia. Diziam que ela era mais velha que a cidadezinha, mas não podiam afirmar com certeza. Sempre fora gentil com todos e era muito querida pelos vizinhos; exceto uma, conforme veremos adiante. Viúva e solitária, passava as tardes regando os girassóis do jardim improvisado no fundo do quintal; varrendo a varanda ou indagando os transeuntes a respeito de saúde, família, tempo e outras trivialidades. Vestindo uma camisola surrada, um chapéu engraçado e sandálias brancas, parecia a avó ideal. Sonolenta, a velhinha judia continuou:

-“Sei Lá” fica muito longe querida. Por que não entra e toma um chá comigo? Prepararei alguns bolinhos de chuva em um minuto - Asmática, ofegou durante alguns segundos e sorriu de maneira benevolente para Anna. Anna olhou para os lados à espera de algum pretexto, titubeou por um instante e respondeu:

- Desculpe Sra.Handsome. Estou com pressa.

- Vocês jovens...Sempre apressados! No entanto, sempre chegam atrasados - a Sra.Handsome balançava a cabeça consternada. De repente, uma terceira voz; esganiçada, com um sotaque esquisito e um timbre médio-grave inconfundível invadiu o ambiente:

- DIONÍSIO! DIONÍSIO! Onde estás você menino? - Anna agora notara que o som vinha do quintal vizinho à Sra.Handsome. Ouviu um rangido, viu o portão de ferro aberto e percebeu a presença de uma senhora de meia-idade magra e alta. Tinha olhos de coruja e um nariz fino, avantajado; o cabelo preto preso num coque, duas argolas douradas nas orelhas e vestia um vestido roxo-azulado.

Marlene Gossip mudara-se há pouco tempo para Anesthesia. Ao contrário da Sra.Hansome estava sempre mal-humorada. Queixava-se pelo descaso da prefeitura local - segundo ela as calçadas imundas não tardariam à trazer a peste para a cidadezinha. Havia um certo exagero nos comentários ácidos vindos daquela boca. Marlene Gossip não hesitava em utilizar as hipérboles mais absurdas para alarmar os cidadãos do suposto perigo que corriam. A maioria da população considerava-lhe uma louca decrépita – alguns mais afoitos, uma bruxa, para o resto era apenas um senhora excêntrica. Anna considerava válida qualquer uma das opções. O fato era reforçado pelos estranhos companheiros dela: 13 gatos. Dionísio era o caçula dos treze e estava desaparecido desde a meia-noite passada. Cinzento como uma nuvem nublada, possuía orelhas pontiagudas e pequenas, olhos curiosamente distintos: um azul turquesa e outro verde gelatina. Astuto, ágil e irrequieto, gostava de brincar com os insetos que encontrava no quintal. Todavia, logo entediava-se e raramente não matava as pobres criaturas. Marlene Gossip nervosa e inconsolável, virou-se para a Sra.Handsome e indagou:

- Vistes meu pobre Dionísio, Eugênia?! - num tom murmurante, quase patético!.

- Oras! Deve estar se divertindo com alguma bacante! – respondeu irônica a Sra.Handsome. Marlene Gossip nascera em Atenas.

- Acalme-se.

- Humpf! – Marlene Gossip não gostou nada da piadinha. Anna abaixou a cabeça e riu baixinho, embora não entendesse completamente o ocorrido. Quando levantou a cabeça, viu os olhos de rapina de Marlene Gossip na sua direção. Assustadores, fitavam obsessivamente os dela. Anna sentiu que não conseguiria fitá-los por muito tempo. A sua garganta foi consumida por um sabor amargo e desagradável. Estava hipnotizada. Foi despertada do transe pela voz rouca e sussurrante da Sra.Handsome:

- Anna! Venha para cá menina...Vamos! – a Sra. Handsome tossia compulsivamente.

- Não, me desculpe, mas hoje eu realmente não posso – Anna olhou os arredores e não viu Marlene Gossip. A Sra.Handsome interrompeu a investigação de Anna:

- Esqueça aquela chata! Como vais teu pai mocinha? – indagou serenamente, com um semblante que deixava Anna constrangida, a Sra. Handsome.

- Na mesma... - o desapontamento de Anna era digno de complacência. A Sra.Handsome pensou por um instante:

- Hmm...Compreendo. Quanto tempo faz? Nove anos?

Anna como num passe de mágica, encontrava-se no seu quarto chorando. Balbuciava as palavras,”mamãe não vá”repetidamente. O pai tentava consolá-la em vão. A expressão gélida, apática e mórbida não dava sinais de mudança. Ele vagava pela casa como um fantasma assustado. Catatônico, observava o retrato da esposa que tanto amara um dia. Abria as janelas e deixava que o vento levasse o resto do sopro vital que ainda restava-lhe. Depois daquele dia fatídico, restara-lhe muito pouco; apenas lembranças, fumaça e desespero. Tornou-se um homem frio e lacônico, que limitava-se a cumprimentar a filha acenando timidamente com a cabeça. O silêncio ensurdecedor do jantar tirava o apetite de Anna. O pai comia sozinho, mastigando lentamente, como se fosse um condenado recebendo a última refeição. Anna não suportava mais olhar para o pai que definhava a olhos nus e negros. Inclusive, chegara a sentir saudades dos sermões dele. Anna ligava o aparelho de som num volume demasiado alto, faltava ao colégio, fumava, fazia tatuagens, colocava piercings, tingia os cabelos, pintava as unhas e as pálpebras de preto, rabiscava as paredes brancas do quarto com giz vermelho, mas nada chamava a atenção do pai. Nada...Absolutamente nada – nem as marcas nos pulsos. Anna passava a maior parte do dia no quarto trancada, com as janelas fechadas, para que a luz do sol não a incomodasse. Agachava-se no canto da parede, fechava os olhos e começava a cantar uma canção bem baixinho:”isso é apenas um sonho ruim, isso é apenas um sonho ruim, isso é apenas um sonho ruim, isso é ape...” - Então Anna acordou.