
Laura despertou pela segunda vez, dirigiu-se a cozinha e estupefata, constatou que alguma coisa peluda fizera uma festa sem convidá-la. Antes que percebesse um extenso”putz”saltou da sua boca até a mesa – mordiscou os lábios censurando-os. A caixa de cereais roída, derramada sobre a mesa, não deixava dúvidas: ele voltara. Ela comprara algumas armadilhas para ratos, porém o fabricante não se responsabilizava pelo uso indevido, afinal, furões não são ratos, embora pertençam a mesma família. Laura bufou, pegou a pá perto da pia e com a ajuda de um pano, apagou os vestígios da travessura noturna. Vasculhou o armário, fogão e a geladeira em busca de algo prático, instantâneo e comestível – era adepta do”não faça, compre feito”. Não sobrara nada. A cidadezinha mais próxima ficava há uns 40 minutos de bicicleta, no entanto ela estava às voltas com a entrega de um relatório. Tinha um prazo apertadíssimo e as cobranças do instituto nacional de pesquisas espaciais. Caso cortassem sua verba, Laura já decidira o que fazer: venderia a idéia de casa-observatório para uma construtora moderninha qualquer. Conseguira a proeza de transformar um observatório abandonado, mal-condicionado, sujo e pequeno, num simpático e confortável lar, desde que você não se importasse com sofás e estantes disputando espaço com um telescópio soviético obsoleto, caleidoscópios artesanais e dormir coberto pelo céu. Laura saiu da cozinha arrastando as pantufas, sentou-se em frente a escrivaninha, ligou o velho Mac, acendeu a luminária em forma de lua. Digitou sua senha pessoal - disse um animado”bom dia”para o computador que inicializara. Workaholic incorrigível, amava-o, mas assim como o canto, a dança e a culinária, este era apenas mais um de seus amores não-correspondidos.
Seis horas depois Laura estava exausta e faminta. Ligou o celular – havia 4 chamadas não-respondidas e 2 mensagens na caixa postal. Ativou o viva-voz; Sara lhe parabenizara e dizia sentir saudades. Laura sorriu, discou alguns números, mas abortou a ligação. Se ligasse agora ouviria os sermões casuais dela:”Laura, o que você precisa é de um namorado! Há quanto não faz aquilo?” –“você sabe, né?!” – “aquele palavrão de 4 letras que os adultos geralmente fazem entre quatro paredes”. Sara diria tudo num tom debochado, recheado de metáforas pífias e ironia. A segunda mensagem era da mãe que implorava que ela voltasse logo – desejava felicidades e recomendava que se alimentasse direitinho.”Farei isso daqui a pouco, está bem?!” – Laura repetia em silêncio. Quando preparava-se para desligar o aparelho, notou que chegara uma nova mensagem de voz:”Laura, aqui é a mamãe outra vez. Esqueça esse computador, desligue a luminária e vá comer!” – “você não é uma planta; não realiza fotossíntese, entendeu?!”.”Beijos”: - JÁ ENTENDI, JÁ ENTENDI! – respondeu Laura exaltada. Laura então levantou-se, enrolou um cachecol xadrez no pescoço, pôs a touca; pegou a carteira no criado-mudo, calçou as botas pretas, desligou a luminária e colocou Mac para dormir no modo de espera. Caminhou até a bicicleta rosa de marchas, cestinha e aros enferrujados.
CONTINUA...