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Prosseguimos a viagem a pé e a passos. Ele me mostrou um mapa que imprimira um dia antes, tive que confiar nos dotes ocultos de navegador dele, não tinha opção, tampouco fazia alguma idéia de onde e quando chegaríamos. Percorremos um bairro nobre de São Paulo, uma parte da cidade que deu certo: construções bonitas, ruas arborizadas, algumas com árvores de caules imensos; pareciam sequóias africanas, calçadas limpas, um lugarzinho bem agradável de se ver. Encontramos um senhor, um verdadeiro trovador, que bradava com um jornal em mãos que a polícia entrara em greve, enquanto nos encarava com um semblante etílico que tantas vezes presenciáramos na vida. Por incrível que pareça não nos perdemos e menos de uma hora depois avistamos o teatro. Esperamos num banco típico de praça a abertura do guichê. Enquanto degustávamos as barras de cereais, meu comparsa recebeu o telefonema de outro comparsa, o que o convidara em primeira instância - ele estava a caminho e parecia perdido. Meu comparsa fez o que pode pra orientá-lo, eu resolvi comprar água. Não foi fácil, não havia uma única padaria ou boteco nas redondezas, eu só avistava restaurantes luxuosos e me perguntava se vendiam garrafas de água nesses lugares. Depois de uns vinte minutos de caminhada achei um oásis, digo boteco. Bairros burgueses são inviáveis pra mim, imaginei. Quando o guichê abriu veio a surpresa: a peça seria apresentada estritamente pra alunos de uma universidade local. Meu amigo protestava em silêncio, assim que o silêncio lhe pareceu barulhento, me confessou que não xingara a moça do guichê porque ela era muito educada e bonita, sobretudo do lado dela havia um segurança, um desses leões de chácara que o desencorajava com os olhos e o intimidava com os músculos. Voltamos rindo de nossa própria desgraça, ironizando, satirizando nossa falta de sorte. Hipotetizamos a possibilidade de tudo não ter passado de uma pegadinha; talvez estivéssemos em algum tipo de reality show, no entanto por mais que eu procurasse não encontrava sinais das câmeras escondidas - era real, e não era legal. Nosso comparsa perdido ligou outra vez, disse que chegara lá, meu amigo lhe contou o ocorrido e pediu que ele tentasse persuadir uma amiga que era estudante da universidade a ir até lá com dois amigos e conseguir os ingressos. Mas não dava mais tempo, ele não ligava de volta, esperávamos sentados e cansados num ponto de ônibus. Eu tocava uma música no violão recém-adquirido por meu comparsa, pessoas passavam, olhavam, algumas admiravam, outras riam, esqueciam e se iam.
Começamos nossa longa caminhada subindo uma avenida movimentada; carros, faróis, prédios e de vez em quando gente de verdade. Eu carregava minha mochila no toráx e abdome, parecia um marsupial e meu comparsa, biólogo formado, não pode deixar de rir bastante com meu comentário - emendou, no tom sarcástico e irônico habitual que "marsupial no Brasil é gambá". Ele flertava através de olhares com as moças bonitas que passavam(ou passeavam) em ônibus, admirava solitariamente algumas sílfides desavisadas que cruzavam nosso caminho - eu via tudo e ria comigo mesmo. Ele brincava dizendo que se não éramos irmãos em outra vida, éramos farinha do mesmo saco - só isso explicaria nossa sincronia nos pensamentos. Muitas vezes nem falamos nada, um apenas olha pro outro e sabe, é como a telepatia que você não encontra nos filmes de ficção. Meu comparsa trazia na mochila barras de cereais com chocolate prum inverno inteiro, placas de rede que eu havia lhe entregado antes por medo de esquecer depois, baquetas e esperanças. Como havíamos combinado, assim que chegamos numa rua famosa por ser um antro musical(há lojas de instrumentos nas quatro direções), fomos ver um violão pelo qual meu comparsa se apaixonara menos de uma semana atrás. Ele não toca o instrumento; faz conservatório de bateria há menos de três meses, tem um baixo mas não sabe tocá-lo também, no entanto é um colecionador de instrumentos dedicado - ele tenciona aprender a tocar todos eles um dia. Ele diz que toca berrante, mas não sei se é verdade nem sei se existe uma escala musical pra isso. Testei o violão durante alguns minutos, dei um veredicto positivo; gostei do instrumento - geralmente sou um cliente chato, testo muitos instrumentos e não levo nenhum e dessa vez não seria diferente, mas meu comparsa estava apaixonado pelo violão e o amor fez com que ele estragasse meus planos - fechou negócio com o vendedor poucos minutos depois. Ele parecia uma criança com um brinquedo novo.
"Eu continuo vivo", não, não é isso, antes que alguém pense o contrário direi que não trata-se do refrão daquela canção bacana do Pearl Jam - essa expressão resume a sensação que tive ao deixar pra trás um dos maiores cemitérios do estado. Sai de casa pra ir ao teatro, acabei indo a um (o)cemitério; todavia toda história tem um começo e a minha não começou assim. Segunda-feira recebi o convite de um amigo e comparsa de longa data - ele disse que haveria uma apresentação gratuita do apresentador do programa "Provocações" da Cultura, num teatro que fica na capital do estado. Achei o convite meio intelectualóide e repentino, afinal eu vi o programa poucas vezes e, embora atestasse a qualidade não imaginava que o fato fosse entrar pra minha retrospectiva particular do ano. Aceitei, sem muito entusiasmo e laconicamente como de costume. Acordei cedo, encontrei meu comparsa no ônibus, conversamos sobre livros, filmes, música, filosofamos sobre tudo isso e mais um pouco, rimos de coisas bobas como bobos; inclusive, ouvi durante a viagem de ônibus a máxima do dia:"O que sua imaginação permitir e a física adequar" - meu comparsa, um canalha muito espirituoso por sinal, divagava sobre uma fantasia sexual, uma espécie de orgia experimental usando o corredor que dá acesso a catraca, mulheres nuas com as mãos atadas as pequenas alças pretas, similares as de mochilas, que ficavam presas numa barra de ferro superior do ônibus. Eu ri muito. O cara é um pervertido declarado! Eu não sabia ainda, mas aquele dia seria repleto de pérolas negras. Antes de descer do ônibus, vi que meu comparsa olhava com olhos de lobo pra baterista da antiga banda da minha irmã. Ele não sabia, quando contei o cara quis me matar - teimava que eu devia ter lhe apresentado; logo eu, que sou um péssimo relações públicas.
Anna descobriu isso numa manhã. Era sexta-feira, 14 de junho de 1979. Mãos grandes e ásperas pesavam sobre seus ombros. Fazia um frio insuportável. Chovera muito algumas horas atrás.”Quando as pessoas morrem um anjo desce do céu e as leva para lá, Anna”, seu pai dizia-lhe com uma expressão apática e sombria. E ao ser perguntado por que sua esposa não acordava, repetia:”Ela está dormindo agora querida “– “foi para um lugar muito, muito distante daqui” – “não se preocupe, o papai está aqui“– “está tudo bem” – em seguida acariciava os cabelos e a testa da garotinha carinhosamente. Anna gritava, chorava, mas a mãe não acordava. Homens vestidos de preto revolviam a terra úmida com pás, jogavam-na sobre a cova recém-aberta. Mentiram para ela. Ela sabia. Sempre mentiam. Nada fazia sentido para Anna agora. Nem aquela coisinha chamada Vida. Pessoas morriam. A Vida era uma garotinha frágil no final das contas. As últimas palavras da mãe ressoavam como um estampido na sua cabeça:
- Não se preocupe querida...É apenas água salgada – dizia a mãe de Anna enquanto enxugava os olhos úmidos num lenço branco. Anna olhou para ela e indagou:
- Ué...Cadê o mar mamãe?
- Está aqui querida – a mãe de Anna colocou o dedo fura-bolos direito na íris esquerda azulada da garotinha, fez um movimento leve para baixo, tocou a pálpebra retirando um cisco e sussurrou no seu ouvido:
- Aqui fica a praia. Querida quero que me prometa uma coisa: você vai construir castelos de areia, está bem? – soluçou, sorriu sem graça e abraçou-lhe fortemente. Anna sentia um aperto – e o abraço não era o único responsável. Anna não esqueceria.
Anna pegou o último chiclete que sobrara na bolsa. Não podia desperdiçá-lo. Usaria-o com cautela. Dividiu-o em duas metades ligeiramente iguais, levou uma delas à boca e mascou lentamente, deixando que a goma tingisse sua língua de violeta. O gosto doce aliviava a tensão. A intensidade do efeito era irregular. Podia durar horas ou apenas alguns minutos. Anna não estava com sorte. Levantou-se e voltou a caminhar. O pátio do colégio lhe esperava uns 120 metros adiante. Os passos desritmados dela produziam um som desagradável, cacofônico e irritante. A sola do coturno estava seriamente comprometida. As pernas cansadas, formigando, imploravam por um descanso. Anna carregava o peso das pequenas coisas – coisinhas que significavam muito para ela. Passou por uma amarelinha tomando cuidado para não pisar no inferno. Os ecos dos passos desapareciam pouco a pouco, juntando-se às escadarias e um corredor amplo que levaria-lhe ao seu destino. Estava muito perto agora. Parou em frente um muro que continha frases subversivas escritas com spray vermelho barato, desenhos, marcas e corações de casais apaixonados. Tinha que estar ali. Anna não lembrava direito o que procurava com tanto afinco. Procurava qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Abaixou a cabeça, fechou os olhos, beijou o pingente do colar, lembrou-se da mãe. Ela lhe dera o colar assim que Anna completou sete anos de idade. Dizia que ele tinha uma história:”Tudo tem uma história Anna” – “não se esqueça” – não cansava-se de afirmar. Esta era antiga. Anna o carregava para onde quer que fosse. O pingente do colar tinha a forma de uma bola de gude. No interior dele havia uma substância, um líquido viscoso que conservava uma mariposa cinzenta morta. A aparência bizarra do colar levantava suspeitas sobre sua procedência. Anna gostava de mariposas – mariposas são legais, dizia. O fato dela não estar viva não lhe incomodava. Embora mariposas e insetos em geral possuíssem um defeito imperdoável. Geralmente tais criaturas morriam queimadas de maneira estúpida em alguma fogueira. Nasciam, viviam, morriam de maneira estúpida. Não eram muito diferentes dos humanos, Anna pensava. A Vida era cheia de encanto, mariposas e insetos – não na mesma proporção decerto. Mariposas simbolizavam o fim inevitável das coisas.
Acorda cedo, levanta, lava o rosto, os papéis na gaveta não mentem: aconteceu mesmo. É estranho, ele imaginou que as coisas voltariam ao normal quando acordasse. Normal...Normais...Agora vê o quanto se acostumou aos padrões. Era fácil, só precisava repeti-los continuamente, dia-a-dia, de maneira mecânica, sem sentir, sem pensar, sem vida. Sente falta da rotina, é irônico, mas nela encontrava um porto seguro. Se acomodou, se acostumou, o doparam, o domesticaram, depois o dispensaram - trocou seu quadrado, seu círculo, por alguma forma e fórmula geométrica desconhecida. Ele pega o ônibus, nota um rosto familiar dentre tantos estranhos; se cumprimentam, dividem lástimas, boa fé, uma integridade repartida ao meio - ele até ignora o português vulgar e vencido de seu ilustre companheiro a prazo. Aguarda sentado um exame, uma sentença, que alguém, algo lhe diga que pode voltar pra casa. O médico responsável lhe chama, ele atende, entra numa sala com as paredes brancas repletas de réplicas baratas de quadros famosos - sob a mesa, caído, está um retrato em preto e branco antigo. Ela é jovem, loira, bonita, ele imagina que o sorriso dela talvez seja a única coisa autêntica ali. Os olhos do médico olham pro monitor do computador, enquanto o mesmo lhe faz as mesmas perguntas que são respondidas do mesmo jeito. Ele volta pra casa, espera o almoço e alguma coisa que não esteja no cardápio - lá fora suas crenças morrem de inanição.
Houve uma época em que Ele atravessava o frenesi da avenida mais famosa da cidade Cinza, pra ir ter com a Liberdade noite-dia, fim de semana sim fim de semana não, conferir de perto o lançamento das novidades que vinham de longe; DVD's, mangás, ipod's, raridades, espiar revistas de contrabaixo japonesas em sebos locais(Dó-ré-mi-fá-sol-la-si é assim! Não importa o lugar), transeuntes falando um idioma diferente, indiferentes, tomar suco de goiaba na feira e relutar(mais uma vez) em provar Yakisoba, ver as gueixas solitárias sentadas nas escadarias da estação, ouvindo J-Pop/Rock, Enka, uma em três, seis, nove, doze, dezesseis num walkman made in Taiwan, gatos japoneses de porcelana chinesa que sempre muito amistosos, cumprimentavam todos que se dispunham a olhá-los do outro lado da vitrine)fora( - coisinhas que esquecera, mas que ainda moravam ali(dentro) Mas agora Ele está em casa, "seguro" e trancado - e gripado. Pensava em ir a casa de amigos tocar, fazer música, fugir, mesmo assim, nesse estado deplorável - imagina que é alguma espécie de mártir desvirtuado. Os amigos desistiram, não por causa dele, eles confessaram que agora tinham um pretexto pra se curarem de suas próprias "ressacas". Ele olha da janela, desolado, pra calçada vazia. A Vida passa, Ele fica. Só lhe restou a combinação Coldplay cobertor violão.
Konichiwa.