sábado, 30 de agosto de 2008

A Carta Azul

Acorda cedo, levanta, lava o rosto, os papéis na gaveta não mentem: aconteceu mesmo. É estranho, ele imaginou que as coisas voltariam ao normal quando acordasse. Normal...Normais...Agora vê o quanto se acostumou aos padrões. Era fácil, só precisava repeti-los continuamente, dia-a-dia, de maneira mecânica, sem sentir, sem pensar, sem vida. Sente falta da rotina, é irônico, mas nela encontrava um porto seguro. Se acomodou, se acostumou, o doparam, o domesticaram, depois o dispensaram - trocou seu quadrado, seu círculo, por alguma forma e fórmula geométrica desconhecida. Ele pega o ônibus, nota um rosto familiar dentre tantos estranhos; se cumprimentam, dividem lástimas, boa fé, uma integridade repartida ao meio - ele até ignora o português vulgar e vencido de seu ilustre companheiro a prazo. Aguarda sentado um exame, uma sentença, que alguém, algo lhe diga que pode voltar pra casa. O médico responsável lhe chama, ele atende, entra numa sala com as paredes brancas repletas de réplicas baratas de quadros famosos - sob a mesa, caído, está um retrato em preto e branco antigo. Ela é jovem, loira, bonita, ele imagina que o sorriso dela talvez seja a única coisa autêntica ali. Os olhos do médico olham pro monitor do computador, enquanto o mesmo lhe faz as mesmas perguntas que são respondidas do mesmo jeito. Ele volta pra casa, espera o almoço e alguma coisa que não esteja no cardápio - lá fora suas crenças morrem de inanição.

domingo, 27 de julho de 2008

DES-ORIENTADO

Houve uma época em que Ele atravessava o frenesi da avenida mais famosa da cidade Cinza, pra ir ter com a Liberdade noite-dia, fim de semana sim fim de semana não, conferir de perto o lançamento das novidades que vinham de longe; DVD's, mangás, ipod's, raridades, espiar revistas de contrabaixo japonesas em sebos locais(Dó-ré-mi-fá-sol-la-si é assim! Não importa o lugar), transeuntes falando um idioma diferente, indiferentes, tomar suco de goiaba na feira e relutar(mais uma vez) em provar Yakisoba, ver as gueixas solitárias sentadas nas escadarias da estação, ouvindo J-Pop/Rock, Enka, uma em três, seis, nove, doze, dezesseis num walkman made in Taiwan, gatos japoneses de porcelana chinesa que sempre muito amistosos, cumprimentavam todos que se dispunham a olhá-los do outro lado da vitrine)fora( - coisinhas que esquecera, mas que ainda moravam ali(dentro) Mas agora Ele está em casa, "seguro" e trancado - e gripado. Pensava em ir a casa de amigos tocar, fazer música, fugir, mesmo assim, nesse estado deplorável - imagina que é alguma espécie de mártir desvirtuado. Os amigos desistiram, não por causa dele, eles confessaram que agora tinham um pretexto pra se curarem de suas próprias "ressacas". Ele olha da janela, desolado, pra calçada vazia. A Vida passa, Ele fica. Só lhe restou a combinação Coldplay cobertor violão.

Konichiwa.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

AMÔRNICA: X = Y

O chevrolet vermelho comportava-se bem; apesar dos ruídos em quarta diminuta, o pára-brisas, os faróis, freios e buzina funcionavam perfeitamente. A vela do motor, desgastada, não apagava por pouco, contudo nada que uns ajustes na repimboca da parafuseta não dessem um jeito. O vidro traseiro, apresentava um adesivo, com a seguinte frase em letras pretas: ”Não ando à pé ou de bicicleta, tenho muitos cavalos que marcham”. Filosofia de pára-choques de caminhão sofisticada. Xavier ligou o rádio, sintonizou na FM familiar – tocavam uma canção que lhe agradava. A canção que Yai adorava – que repetia, repetia e repetia tantas vezes. Um teste de fogo para o aparelho de som velho e cansado. Xavier pensava nela. Ela enjoara outra vez. Inventava: balançou delicadamente o chaveiro com a inicial Y, abriu o porta-luva, retirou um par de sapatinhos de crochê, pendurou-os no espelho do passageiro, aumentou o volume do rádio, acelerou e começou a cantar. Xavier amava Yai. Ela lembrava-o de que era feliz.
20 minutos dali, Yai preocupava-se. A menstruação estava atrasada. E se estivesse grávida? Não estava preparada, pensou. Alisou o ventre rapidamente. Prosseguiu. Se alguém estivesse em casa atenderia. De repente, passou pela sua cabeça as dúvidas mais impulsivas e impossíveis possíveis: "o que Xavier acharia? Ele ainda gostaria de mim se eu engordasse muito? E todo aquele leite de soja transgênica que bebi de manhã? Afetarão o desenvolvimento do bebê? AI MEU DEUS VOU EXPLODIR!". Yai respirou fundo, pegou o chaveiro com a inicial X; empurrou a maçaneta da porta, deteve-se um instante: tinha a impressão de que ouvira algo. Sorriu, acariciou a inicial X e entrou no apartamento. Ficaria bem. Tinha Xavier. Xavier e Yai entrariam numa nova fase agora. Uma fase estranha e complicada. Precisariam ser mais responsáveis do que nunca, afinal, não eram mais alunos do primeiro grau. X e Y foram feitos um para o outro, embora um igual (=) insista em se meter entre os 2. A matemática é uma ciência exata. E o amor...O amor às vezes dá certo.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

AMÔRNICA: Gostosuras ou Travessuras?

Foi no mês de todos os santos, domingo, durante um festival em que crianças fantasiadas trocavam travessuras por gostosuras. Uma carruagem desgovernada atingiu um poste; libertando os cavalos que perderam os estribos e as estribeiras. Saíram em disparada, atropelando o velho Sam Hain que passeava distraído pela calçada. O laudo do legista apontou ”atropelamento por eqüinos ordinariamente adestrados “ como a causa mortis. Xavier foi ao velório sozinho. Yai estava indisposta. Xavier demorou mais tempo do que o habitual para arrumar-se. O da gravata cansava-lhe. Se havia algum segredo, algo que a maioria dos homens desconhecia e, meia dúzia de gatos pingados privilegiados sabiam, era como se dar o numa maldita gravata! – pensava Xavier. Parentes, amigos, funcionários e puxa-sacos, rodeavam o caixão abertoonde o defunto devidamente apresentável, exibia a testa proeminente, os cabelos ralos e grisalhos, e alguns hematomas no queixo que o de arroz não conseguira apagar. A viúva soluçava alto, amparada pelo ombro do filho único do casal. No ínterim dos soluços, balbuciava impropérios dirigidos aos estranhos, pobres diabos, que aproveitavam-se de sua dor e desgraça para saciar a fome; embriagar-se com uísque legítimo e importado. Xavier hesitava em cumprimentar-lhe. Apesar de ter cuidado pessoalmente do envio de coroas e outros pormenores do velório, não sentia-se à vontade com a situação. Xavier aproximou-se lentamente da viúva, ensaiando uma espontaneidade ensaiada, mas a voz da mãe de Dominique cancelou sua peça. Ela dizia que a novena começaria e pedia aos parentes e amigos mais próximos, que se reunissem nos fundos da capela. Xavier seguiu, cismado, as senhoras de véu negro, terços e rosários pelo corredor estreito e molhado que desaguava perto de um altar. O filho do Sr. Sam Hain, o advogado e o barbeiro, eram os únicos homens além dele ali. É costume que as mulheres recitem ave-marias enquanto os homens recitam o pai-nosso. Xavier não estava acostumado. Esqueceram de lhe avisar. Suava frio, os olhares reprovadores vinham de todas as direções(“ORAS BOLAS, QUE CULPA TENHO?! – NUNCA FUI COROINHA, PÔ!”) Xavier gritava silenciosamente. Pálido, olhou para o Cristo crucificado. Procurava a saída de emergência. Uma senhora sisuda, cheia dos ”blábláblás e nhem nhem nhens”, começou a tossir compulsivamente. Xavier aproveitou-se da distração ocasionada pela crise pulmonar dela, para furtivamente, num zás-trás, sair dali. Xavier viu o caixão disperso no meio da massa que outrora se juntava ali, aproximou-se, encostou na borda. Fitou o defunto, fixando-se no rosto. A face áustera revelava um homem que não conhecia sutilezas. Não tolerava entretantos, poréns e todavias. Dominique Sam Hain fora assim toda vida. Xavier lembrou-se dos tapinhas nas costas, as pilhérias matinais, as confissões extra-conjugais e todas as coisas que o rei da indústria da morte, o papa dos defuntos, deixara para trás e que agora ele trataria de devolver. Xavier afrouxou o da gravata. Fechou os olhos por um minuto. Abriu-os, mexeu nos bolsos da calça e o terno; encontrou uma moeda. Não bastava para a corrida do barqueiro. As coisas andavam difíceis no inferno, imaginava. Arrancou um botão do terno de linho emprestado. Talvez bastasse para uma corrida até o purgatório, Xavier torcia - não sabia rezar. Colocou o botão sobre o olho esquerdo do defunto. Por fim, pôs a moeda sobre o olho direito. Foi embora sem conversar com ninguém.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

AMÔRNICA: Contra Chronos.

Yai não superava a vizinha que acordava de manhãzinha para pedir café e açúcar emprestado, com um sorriso no rosto tão verdadeiro quanto uma Mona Lisa de Picasso. A estranha chamava-se Joana e tinha uma aversão inexplicável as consoantes: oiii, ééé, iiii, oooo, uuum compunham a maior parte do seu vocabulário social. Vestia um robe curto, vermelho e insinuante, carregava uma xícara e um jornal nas mãos. Trocava de namorado toda semana – Yai contara. Quando ia para o trabalho, Yai voltava a esbarrar com ela no corredor. Xavier a evitava. Por sorte(claro! Pois nãomelhor definição obviamente) o elevador enguiçava durante a semana inteira. Uma placa indicava:”Elevador em manutenção"– Xavier descia pelas escadas sem olhar para trás - era melhor correr dos riscos. Yai apressada, esbarrava nos outros moradores, desculpava-se com um perdão, despedia-se abruptamente e voltava a apostar corrida com Chronos. Estava no calcanhar dele outra vez. Esgotara seus créditos no último mês. Precisava apressar-se e o Tempo era um trapaceiro. Yai trabalhava numa clínica médica, na seção de radiologia há 9 meses. Era praticamente um serviço voluntário, que o salário mal cobria suas despesas, no entanto fora a melhor opção que encontrara. Não fora difícil escolher, recém-formada, não tinha muitas opções. Ali, 6 meses atrás, conhecera Xavier. A princípio Yai dissera para Xavier que caso ele estivesse à procura de um coração, estava no lugar errado – a seção de cardiologia ficava do outro lado, um pouco mais para a esquerda. Xavier usou cantadas bregas, presentes e pedantismo para convencê-la do que sentia. Yai não achara-o atraente, ria e, como estava sozinha e o rapaz era ao menos engraçadinho, resolveu continuar a história. Uma história repleta de vírgulas, parênteses, reticências e travessões. Ela ainda guardava na gaveta da cômoda, no meio de calcinhas, envelopes, cartas e cartões-postais, a chapa que continha o raio-x do primeiro beijo deles.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

AMÔRNICA: Nós Quatro.

Hoje Xavier cumpriria a promessa. Fora promovido. Ele acreditava que Yai precisava de um animal de estimação também – convencera-se disso. Todavia, não havia espaço para mais um São Bernardo. Chico ficaria solteiro. Xavier resolveu então pedir conselhos ao atendente do pet shop, que solícito, sugeriu-lhe uma iguana. Xavier olhou o réptil da cabeça a cauda, coçou a cabeça:”frio demais!” - em seguida perguntou ao atendente se não tinham nada menos exótico. O atendente então sugeriu-lhe um hamster. Um mamífero tradicional e caseiro. Xavier olhou para as gaiolas, viu um hamster devorando sementes de girassol – do lado, outro, reconchudo, suava na esteira. Aquilo pareceu-lhe engraçado. Faltava alguma coisa ainda - não era este. O atendente acendeu um cigarro, tinha um chapéu de explorador e tatuagens espalhadas pelo corpo inteiro. A girafa azul no bíceps esquerdo destacava-se. Xavier sempre teve sérios problemas com escolhas. Ele era o X da questão. Passava mais de uma hora na locadora, alugava os filmes errados e voltava para casa. Encontrava Yai cochilando no sofá, Chico esparramado no carpete, a televisão fora do ar e um balde de pipocas frias. Xavier acordava Yai fazendo cócegas na planta de seus pés. Cansada dos constantes atrasos, Yai resolveu ensiná-lo a portar-se diante a escolha de um filme: bastava que escolhesse um romântico, bonitinho, com um piano afinado e chuva que ela daria-se por satisfeita. Dessa vez Xavier não contaria com sua ajuda. Precisava escolher sozinho(“CÉUS, COMO FARIA ISSO?!) – se até as cores de seus pijamas foram escolhidas por ela!?. Quem sabe uma arara, pensou. Yai teria alguém para alfabetizar, conversar e dar alpiste todos os diasalguém que faria-lhe se sentir importante incondicionalmente. Xavier acompanhou o atendente até o viveiro, mas assim que adentrou o lugar, ouviu consternado araras vermelhas, azuis e amarelas saudarem o atendente com palavrões em uníssonoele parecia bastante popular. Xavier acabou deixando o pet shop com as mãos vazias e a promessa de que entregariam o aquário e sua moradora, uma estrela-do-mar, no fim de semana. Yai adorou a surpresa. Ficou ainda mais feliz quando descobriu o motivo. Disse que a estrela-do-mar se chamaria Lis. Uma estrela com nome de flor.Yai não dispensava flores. Xavier gostava bastante dos cactos que preservava num vaso de areia; feito com um pote de iogurte desidratado. Yai não sabia o que dizer para agradecer. Xavier disse que se ela não dissesse nada, arrancaria as palavras de sua boca à força: tomou-a nos braços e beijou-lhe e intensamente. Chico olhou para a cena e a estrela enciumado. Nestes momentos, Xavier esquecia o quão incomodava-lhe as abreviações que Yai usava: pra, tá, pra, tô, pra, quê, mor, etc.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

AMÔRNICA: Dois.

Yai adorava espuma de café com chantily, caramelos, all-star preto de cano longo, cheiro de naftalina, um vestido marinho com bolinhas brancas e o broche de São Longuinho, achados num brechó perdido, e dançar tango com a tábua de passar roupas. Xavier preferia cães e o programa de perguntas e respostas que passava sábado à noite. Xavier e Yai dividiam o apartamento minúsculo com um cão São Bernardo chamado Francisco. Às vezes, ”Chico" (como Xavier apelidara-o carinhosamente), tinha surtos de claustrofobia. Um pacote de jujubas, alguns afagos e um passeio pelas redondezas faziam parte da terapia. Xavier não sofria de claustrofobia, entretanto, escadas rolantes e elevadores provocavam-lhe calafrios. Antes de mudar-se definitivamente, fez várias perguntas a respeito da segurança dos elevadores do prédio. O síndico respondeu comclaros, pois nãos e obviamentes”. Neste dia, à noite, logo após a sobremesa, Xavier teve pesadelos horríveis. Sonhou que ratos, inquilinos indesejáveis do 209, aglomeravam-se na forma de uma tesoura; roíam e rompiam o cabo do elevador. “Bom, este foi mais original do que ser enterrado vivo, não?!” – ria nervoso, enquanto contava para Yai o ocorrido no café da manhã. Xavier realmente detestava elevadores – e balas com gosto de xarope. Yai não gostava de cães. Tolerava-os. Chico costumava confundir os abajures com postes – mijava neles, molhando o carpete(odiava os persas!) transformando o que antes era uma sala num banheiro underground. Yai ficava cricri quando flagrava-o mordendo, mastigando, fazendo cracks e crecks com os duendes, fadas e bruxas de cera que ficavam na sala, em cima da mesinha de centro. Ela tolerava as peripécias dele porque sabia que o amor exigia concessões, impunha condições, tinha seu preço. O dela tinha preço, nome e pêlos. Xavier prometera-lhe que assim que pudesse, compraria um osso de borracha para Chico num pet shop.