quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CRÔNICA PLUVIAL

Antes do início, deixe-me dar uma prévia do que Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo concluiu no fim: definitivamente ele precisava ingressar numa escola de natação - apesar de ser pisciano, não sabia nadar. Tá, tá sei que era patético não saber fazê-lo com idade que tinha, ninguém precisa lembrá-lo. Tudo estaria bem, uma vez que ele sempre evitou praias, rios, piscinas e quaisquer locais que alocam uma quantidade de água superior a uns 0, 25 metros cúbicos(a quanto equivale isso mesmo?) No entanto, num sábado de um dia qualquer ele saiu de casa em direção a algum lugar da metrópole. É assim que ele chama a parte do estado onde as coisas acontecem. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo mora numa cidadezinha provinciana, uma espécie de prima pobre da Metrópole, um lugarzinho afastado do centro, agitação e quaisquer coisas realmente interessantes. O tempo naquele dia era estável e a temperatura amena, porém esta cresceu gradativamente durante o percurso dele. Ele não sabia exatamente como chegar ao seu destino, já que tinha apenas um mapa improvisado numa folha de papel amassada e um senso de direção duvidoso. Após andar quadras e quadras a pé, telefonar umas três vezes pedindo orientações e, suar como um cavalo, encontrou o dito e escrito local – as horas seguintes foram bem agradáveis de fato, apesar de uma senhora que já graduara-se nas artes balzaquiânicas ter lhe assediado e o colocado em maus lençóis. Bares escondem perigos atrás de mesas, cadeiras, especialmente copos de cerveja. Ele precisava voltar para casa no mesmo dia, sabia disso. Embora se dispusessem a pernoitá-lo, ele tinha que estar presente no aniversário de um amigo de longa data no outro dia. Logo pela manhã cuidaria dos detalhes com outros amigos. Voltou às pressas, agora sem muitas dificuldades, no entanto quando chegou a um certo ponto, foi surpreendido por um temporal, um daqueles típicos de filmes-catástrofe-hollywoodianos - uma daquelas enchentes que outrora só conhecia pelos noticiários. Agora imaginem um cara descendo uma marginal inundada às 11:30 da noite, correndo como um alucinado(corra Forrest, corra!) para não perder o último ônibus. A água invadira as calçadas e arrastava as coisas que encontrava pelo caminho. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo desviava dos pontos mais alagados com dificuldades. Parou perto de um farol, a visibilidade estava muito ruim - ele sentia a falta dos óculos, embora a armação não contasse com um pára-brisas conjugado(coisa que só cientistas malucos ou sujeitos muito excêntricos devem ou deveriam possuir). Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo, num momento de otimismo efêmero, quase delirante, cogitou a aparição do resgate na forma de um velho de barba branca e longa em sua arca gigantesca, que bradaria: “ei, ei rapaz! Quer uma carona? Ainda não temos nenhum animal da sua espécie aqui”. Depois de uns 10 minutos avistou o último ônibus para a cidade vizinha. Correu com tudo que restara de suas pernas – não sobrara muita coisa. Quando entrou no ônibus, foi obrigado a suportar os olhares curiosos dos outros passageiros e a cara-de-pau do cobrador que lhe indagou com ironia e retórica: “você se molhou, hein?!"(como se aquilo fosse um momento raro de epifania) – Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo estava encharcado dos pés a cabeça. Sentia que um alevino podia saltar do seu All-star a qualquer momento. Não sabia o que tinha na coca-cola que tomara horas atrás, mas coisas como peixinhos coloridos saindo de suas meias reproduziam-se em sua cabeça. Assustou-se e investigando os arredores, percebeu que sua imaginação estava lhe pregando peças. Notou que a viagem estava demorando mais que o habitual - é que até então, não sabia que mudavam a rota durante este horário – cortavam outro município antes da conclusão da viagem. Logo um temor tomou proporções inesperadas. E se tudo não passasse de um plano arquitetado por uma quadrilha especializada em tráfico de órgãos? Sabe-se-lá onde e como ele acordaria! Sem um rim, numa terra estranha com estranhos que o olhariam com estranheza, como estrangeiro. Mudança de itinerário. Como desconhecia esse detalhe, deixou que sua mente o levasse até seus porões. Começara mais uma corrida contra o tempo. Aquele-de-quem-falo-mas-sobre-quem-não-falo tinha que estar no ponto à 01 hora da manhã ou teria que passar quatro horas na companhia de cães e bêbados. Apesar da rota inusitada chegou a tempo no ponto. A garoa substituira o temporal e não havia uma única luz acesa nas casas do quarteirão. Um sujeito estranho apareceu e começou a lhe fazer um bocado de perguntas, que ele respondia o mais laconicamente possível. Pontos de ônibus são chamarizes para este tipo de gente, imaginou. Olhou o sujeito estranho enquanto ele se distraia com alguma coisa alheia a seus olhos - ele não parecia um fantasma. Ao menos não encontrou nenhum resquício de atividade espectral/ectoplásmica nele. Riu por um instante: era uma pena, parecia-lhe um bom começo pra um conto a la "Goosebumps". Viu luzes vindo em sua direção, acenou pro ônibus, entrou e durante o trajeto, antes do fim linha, encontrou um conhecido – este não perdeu a oportunidade de caçoar do estado dele. E dizer que tudo começou com um telefonema, doravante, um convite(“venha até aqui, estarei te esperando...”) Moral da história: não aceite coca-cola se esta lhe parecer borbulhante demais – ali existe alguma coisa além da simples e tradicional reação química envolvendo o oxigênio.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Mensagem Numa Garrafa...

- Tudo bem, tudo bem, mas você nunca ouviu o que dizem, que não se deve falar com estranhos, moça? – os olhos do estranho olhavam para os de Nah fixamente. O olhar dele intimidava Nah, entretanto, o choque inicial passara e ela já podia lidar com aquilo sem apelar para os óculos escuros na bolsa.

- Sim, já ouvi...Bastante. Minha mãe fez o dever de casa direitinho. Ensinou-me isso e muitas coisas, mas sabe, nunca entendi direito, talvez não devesse ter matado tantas aulas, whatever...Entende? – Nah não entendia porque estava contando tudo aquilo para um estranho, porém não se sentia mal com a idéia.

- Não, não entendo moça, desculpe: sou órfão.

- Sinto muito, eu não queria...- Nah ficara muito constrangida. Os cálculos da distância que separavam a calçada de seus pés se somavam a outros pensamentos desconexos. O estranho percebendo seu constrangimento, disse:

- Mas minha avó sempre me dizia isso também.

- Sério?! – Nah disse, surpresa.

- Não, não é sério moça. Menti para fazer...- antes que o estranho terminasse, Nah disse em uníssono:

- “Com que se sentisse melhor” – os dois riram ao mesmo tempo.

- Obrigado...Estranho. Devo te chamar assim ou você tem outro nome, rapaz? – Nah indagou sorridente.

- Ah perdão! Onde estão meus modos? Prazer sou o Away, mas pode me chamar de estranho se preferir – Way estendeu sua mão, apertou desajeitadamente a de Nah e recuou dois passos.

- Prazer, me chamo Nah Away, ou estranho “anyway” – Nah e Way riram de novo. Um riso tenso, nervoso, que consumia o que fora dito nos últimos três minutos.

- Então, agora que esclarecemos os desentendidos, poderia me dizer o que são aquelas cartas, Way? – Nah apontava o dedo na direção das que ainda podiam ser vistas dali.

- Nada especial...Versos roubados, canções de amor emprestadas, filosofias inventadas...Nada que mereça muita atenção, creio – Way disse num tom profundamente melancólico. Nah virou-se, apoiou o cotovelo sobre o parapeito do viaduto, olhou para Away, colocou o punho debaixo do queixo e disse:

- Parece legal. Way, acho que gosto de mentiras bonitas! – Nah voltou seu olhar para as cartas, com um sorriso na ponta dos lábios e o entusiasmo impresso nas sobrancelhas. Away esboçou um sorriso borrado, apagou-o ligeiramente, lembrou-se de Shakespeare, um dos charlatães mais brilhantes que conhecera, abriu a palma da mão, inclinou os dedos como se segurasse um crânio imaginário e disse declamando, num tom demasiado cômico:

- Não são mentiras madame; são verdades vencidas!

- Pois bem, que assim seja cavalheiro! – Nah embarcara na Caravana de Devaneios de Away.

Os guichês da estação reabriram, o alvoroço cessou, Nah despediu-se de Away apressadamente, apertando o passo e os pés para comprar o bilhete de embarque a tempo. Comprou o bilhete, arrependeu-se uma duas três vezes - relutava em cruzar a catraca quando a Sorte atendeu suas súplicas silenciosas:

- Nah! – disse Away. Nah parou, respirou fundo, virou-se e disse gastando a simpatia racionada do dia:

- O que foi?

- Você esqueceu isso – Away entregou um guarda-chuva preto para Nah. Ela agradeceu envergonhada, depois de alguns passos acenou e disse tchau timidamente. Nah sentia-se meio estúpida por encerrar a conversa assim, sem um posfácio, uma troca de telefones, email’ s, enfins sem afins, contudo não havia mais tempo. Passaram-se uma semana, duas, três, um mês talvez, o estranho não deixara nenhum vestígio de sua presença na estação. Nah já desistira de persegui-lo em sonhos, ruas, rostos, avenidas e esquinas, quando notou a presença de um objeto de plástico no parapeito onde conversara com Away. Aproximou-se, apressadamente pegou a garrafa de água mineral vazia e a abriu: ela continha um bilhete em papel-cartão que dizia “Away - Mentiras sob Encomenda”, e um número de telefone abaixo. Nah sorriu sozinha e solene, lendo o recado no verso do cartão, riu demasiadamente – ele dizia: “Faça um pedido, mas não ESFREGUE a garrafa!”.

domingo, 11 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: O Lá!

Ela normalmente dar-se-ia por satisfeita, mas o estranho no corredor parecia lhe desafiar; pedia que Nah transgredisse suas convicções. Nah aproximou-se do estranho, aproveitando o tumulto causado pelo fechamento repentino dos guichês da estação. O sujeito não notara a presença dela – continuava com os braços sobre o parapeito do viaduto, olhando para as cartas que se afastavam rapidamente. Nah estava à cerca de um metro e meio dele, do lado direito, apoiada sobre o mesmo parapeito - uma distância que considerava socialmente segura, afinal, se havia uma lei em que acreditava era a que dizia que dois estranhos não podem ocupar um espaço comum menor que um metro ao mesmo tempo. Nah abandonaria seu ceticismo aos poucos, deixando um pedacinho de lógica ali, um bocado de razão pra lá:

- Você sempre faz isso? – Nah se arrependera até o último fio da mecha roxa do cabelo pela indagação. De onde Diabos tirara aquilo? De algum manual de regras de etiqueta em liquidação? Nah envergonhara-se...Muito. Media com os olhos a distância que separava a calçada de seus pés. Respirava com alguma dificuldade, cabisbaixa, encarando as meias bicolores das pernas que tremiam. Tentava se acalmar contando mentiras para si mesma (“talvez ele seja surdo”, “quem sabe estava tão distraído que nem percebeu”, “ele é autista, isso!”, ”UFA! Essa foi por pouco dona Nah”) – Nah parecia mais tranqüila. Quando estava pronta para partir, a voz do estranho chegou até seus ouvidos:

- Não, só quando eles não estão olhando – o estranho apontava para alguns sujeitos vestidos com um uniforme laranja, sentados nos bancos de uma padaria, tomando café e assistindo o noticiário – o estranho não mudara de posição. A voz dele era grave, baixa e ele falava pausadamente, tomando cuidado para não atropelar seu léxico.

Depois de investigar por um instante os arredores, ele virou-se para Nah, olhou para a bolsa que ela carregava, a roupa dela e as meias bicolores - estas prenderam sua atenção durante meio tempo. Disse num tom de voz ainda mais baixo, como se estivesse contando um segredo e temesse ser descoberto a qualquer momento:

- Você é um deles? – os olhos do estranho repousavam sobre as meias bicolores de Nah. Nah respondeu abruptamente, rindo:

- Não, não sou um deles! – Nah não conseguia olhar para o rosto do estranho seriamente. Depois de se refazer prosseguiu:

- Olhe, nem estou vestida de laranja.

- Nada a impede de ser uma agente disfarçada ou estar à paisana – o estranho parecia perturbado. Nah não acreditava naquilo, o sujeito estava mesmo falando sério.

- Eu não sou uma agente disfarçada nem estou à paisana, então pode se acalmar, tá? – Nah evitava rir, mas a Ironia estava perto, muito perto, escondia-se na prosa e gestos.

domingo, 4 de janeiro de 2009

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Estranhos Conhecidos.

Nah mais uma vez esperaria pela revanche. As discussões continuaram, os empates técnicos também, até o dia em que Nah desistiu de convencer a mãe que a menina-moça já era uma mulher. Trancou a faculdade de Pedagogia, arranjou trabalho numa empresa de eventos e alugou uma casinha, do outro lado da cidade. Ali não precisaria se preocupar com as meias espalhadas pela sala, as barras de chocolate vencidas no armário e nem prestaria contas sobre a origem e condições financeiras de um novo namorado. Nah gostava da nova vida; do cheiro de sabão em pó da lavanderia, dos milk-shakes de ovo maltine sem restrição nos finais de semana, dos copos de café e disposição na padaria da esquina, de dormir com a televisão ligada, vendo documentários e reportagens investigativas, andar seminua de madrugada pela casa ou passar a manhã inteira enrolada numa toalha de banho, conversar com Margô, uma mandrágora cultivada no jardim guardado por gárgulas de gesso, e Dorothy, uma guitarra strato vermelha, que passava horas no colo de Nah – enquanto ela sentava-se na frente do espelho, em cima do tapete rubro cheio de velas e marcas de cera, tocando e compondo iê-iês e lálálás - excentricidades que ela preferia manter em segredo, longe do olhar de terceiros. Nah provava as coisas casuais e corriqueiras, sem pressa e moderação, sentindo-se mais e mais lúdica a cada pedacinho de trufa arrancado suavemente, enquanto ia-e-voltava-e-ia do trabalho. Nah ampliara seu círculo social significamente, conhecera gente muito interessante, gente muito estranha, gente de verdade também (um rapaz que vendia balas de goma nas ruas, uma senhora com seus quitutes, um senhor que anunciava as frutas de sua barraca com apitos e um megafone...) Mas ninguém, ninguém mesmo, parecia com aquele sujeito engraçado que conhecera no viaduto que dava acesso ao corredor da estação de metrô. Ele parecia completamente indiferente ao espaço e tempo que o cercava, olhando para as pessoas que marchavam lá embaixo, em direção a seus quartos-hotéis, deveres e afazeres (quem sabe, talvez, mais um dia, outra vez, que seja) O rapaz tinha a barba por fazer, olhos pretos e o cabelo castanho escuro brigara com a escova de manhã; vestia um jeans desbotado e uma camiseta preta de uma banda underground que menos de 0,3% da população mundial ouvira falar, e calçava sandálias pretas que exibiam os pés pálidos – ele carregava uma mochila transversal e volta e meia, pegava a garrafa de água mineral guardada nela, dava alguns goles e a colocava de volta. Tirava um bloco de notas da bolsa, rabiscava algumas coisas ilegíveis, dobrava cuidadosamente as folhas, transformando-as em envelopes muito pequenos, com asas nas bordas e lançava-os no ar – o vento se encarregaria de levá-los embora, entregar as cartas endereçadas a alguém. Nah observava as cartas espalhadas no ar e com um alumbramento raro, imaginava o que o rapaz escrevera em cada uma delas: poemas, canções de amor, manifestos políticos, filosofias de rodoviária, versículos, pedidos de socorro, mensagens subliminares(aretècte e siat!) e muitas outras coisas passeavam por sua cabeça.

P.S: "É, essa semana demorou mais que o esperado pra chegar - problemas técnicos e uma indisposição costumeira atrasaram o processo"...(Di' stante Enfim em nota não-oficial)

domingo, 21 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Guerrilha(Sucrilhos)

Não negocio com terroristas, dizia para Nah. Durante o café da manhã, enquanto Nah insistia em extrair mais algumas gotas de ketchup do frasco enrugado, Teresa repetia o de praxe:

- Já arrumou aquela bagunça, querida? Não me venha com guerrilhas fantasiosas outra vez, certo?

- Já vou... - Nah respondia bocejando, olhando para os lados à procura de uma saída de emergência. Todavia, sua mãe tratava de mantê-las fechadas.

- Termine de comer e vá. Já se passaram cinco minutos, sabia?

- Não posso – Nah dizia.

- A Nah de cinco minutos atrás não existe mais. Mortos saldam suas dívidas Dona Teresa - Nah ria. Aprendera um pouco de retórica nas apostilas de filosofia do cursinho.

- Bom, então espero que a nova Nah saiba lavar a louça e passar a roupa – Teresa dizia lentamente, saboreando cada sílaba.

- Quando minha mãe virou a madrasta má?! - dizia estupefata, Nah. Teresa colocava os óculos escuros, pegava a bolsa, virava-se de costas e, acenando dizia:

- Te vejo mais tarde...Tenha um bom dia Cinderela – pendurava avisos na porta do banheiro, da geladeira e do quarto de Nah antes de ir para o trabalho.

sábado, 13 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ: Nostalgia com Waffles.

O acontecimento despertara o interesse da Nostalgia: Nah lembrou-se da mãe que sempre lhe repreendia por falar com estranhos. A mãe continuava a lhe repreender, pregar-lhe sermões com um martelo enferrujado, entretanto, usava meios mais ortodoxos que as broncas e puxões de orelha da infância. A mãe de Nah não se conformava com as escolhas da filha. Nah saira de casa dois meses atrás e não voltara - não ligava, tampouco retornava as ligações, enviava cartas ou e-mails. Nah chamava de independência o que sua mãe chamada Teresa, chamava de Imprudência. O pai de Nah se separara de sua mãe muito cedo, quando ela tinha apenas seis anos de idade. A mãe de Nah aceitou o divórcio sem relutância, já que a relação desgastara-se bastante e, incomodava-lhe a presença dos pés frios de um estranho em seus lençóis. Ironizava a situação nos jogos de cartas de sexta-feira à noite. Dizia para as amigas que não precisava de vibradores orgânicos. Teresa as convencia de que estava certa e o melhor que faziam, era continuar jogando cartas ao invés do jogo da Verdade. Nesse jogo Teresa sempre perdia. E Teresa odiava perder. Preferia enfrentar o azar no pôquer, as risadas altas e as provocações, o curinga resenhado, os ases, ouros, espadas, pedras e paus, truques e trapaças de Verônika, vizinha e convidada em casos de emergência; quando nem toda lista telefônica podia resolver. Verônika era a substituta natural de Irene, sua irmã gêmea, quando Irene se encontrava perdida e indisposta, flertando com a Depressão no fundo de um poço escuro 4x4. Irene era negra, muito alta, tinha 1, 86 centímetros de altura e aspirações, tornozelos bem torneados, olhos cor de mel e uma voz que encantava e intimidava homens e mulheres em proporções. Ela estudava canto lírico desde os oito anos, mas como faltavam óperas na região, ganhava aplausos e a vida em clubes noturnos de soul e jazz da cidade. Verônika era meio centímetro mais alta, um minuto mais nova e discutia relacionamentos com estranhos no elevador. Morava no terceiro andar do edifício, dois acima da irmã mais velha. Nah considerava-lhe sua tia adotiva favorita. Verônika ensinara Nah a tocar violão e se maquiar. Também lhe ensinou alguns palavrões, a calcular e a desenhar dragões. Não tivera tempo de ensiná-la a jogar pôquer. Lamentava-se por isso. Coube a mãe de Nah ensiná-la a mastigar direito a comida, escovar os dentes, fazer waffles e panquecas de queijo e que óculos escuros e protetores solares são indispensáveis. E que não adiantava, a existência de duendes revolucionários no colchão, um pretexto com o aval da Preguiça, não funcionaria outra vez – Nah teria que arrumar o quarto ou sofreria com castigos e sanções severas. Citações do estatuto de defesa dos direitos da criança e adolescente, acusações de fascismo, greves de fome nem ameaças de atentados aos bons costumes, comoviam, convenciam Teresa de que ela precisava ser mais flexível com a filha.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

NAH CHUVA MAIS UMA VEZ

Nah sentou-se nos fundos do vagão, num assento reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes, passageiros com crianças no colo e, extraordinariamente "pessoas socialmente indispostas". Nah tramava uma maneira de tornar sua conduta legalmente aceita - seus olhos vagavam pelo vagão, enquanto imaginava sua licença usurpada ilustrada ao lado das demais. Nah tinha fobia social. Parecia bastante satisfeita hoje, afinal, havia apenas cinco pessoas naquele vagão. Um milagre parecido só feriados prolongados e os minutos finais do fim do dia poderiam proporcionar. Um homem de meia-idade, calvo, com um jornal aberto, sentava-se do lado oposto de Nah. Folheava o caderno de negócios apressadamente. Nah espiava o verso do jornal, assim que o homem dobrava as páginas. Ela tentava entreter os olhos inchados. Gastara o último frasco de colírio, poucas horas antes, durante uma crise repentina de renite. O caderno de negócios não fica longe das palavras cruzadas, imaginava. Bastava um pouco de paciência e, logo, logo estaria testando todo conhecimento que adquirira no Google. No entanto, o homem deteve-se numa página, observou cuidadosamente os índices da bolsa de valores e, deixando um "tsc" escapulir entre o vão dos dentes cerrados, fechou o jornal. Nah perdera a última chance de matar o tempo sem sujar as mãos. Abriu a bolsa, pegou o lápis de olho, desenhou algumas estrelas nas unhas da mão direita. Poucos instantes depois, após apagar o esboço de um coração no dedo anular, Nah adicionou uma lua minguante à estrela solitária do polegar direito. Assim que se virou, notou os olhares de uma garotinha sentada do lado esquerdo do vagão. A garotinha sentava-se do lado da mãe, cujos sentidos oscilavam – ela cochilava indiferente aos avisos de desembarque. A garotinha olhava para Nah, abraçando com força, o que Nah imaginava ser um pingüim de pelúcia azul. A mãe da garotinha nos breves instantes de consciência retocava a maquiagem com a ajuda da janela, retirava o excesso de batom vermelho com um lenço de papel, ajustava a saia curta, justa e vermelha e calçava parcialmente os sapatos de salto alto. Para Nah existia algum tipo de elegância marginal nos modos da mulher; uma vulgaridade sublimada pela graça dos movimentos. Os olhos fundos denunciavam o descaso da mulher com o sono. Nah guardou o lápis de olho, pegou uma barra de cereais e, depois de constatar que o homem de meia-idade já guardara o jornal numa pasta de couro preta, ofereceu timidamente a barra para a garotinha. A garotinha abaixou a cabeça, moveu-a de um lado para o outro, rejeitando a oferta. Nah insistiu gesticulando; esforçava-se para que sua mímica semi-analfabeta fosse compreendida pela criança de 09 anos de idade. A garotinha riu ao ver os gestos tresloucados de Nah; colocou a mão direita nas costas do pingüim de pelúcia, fez alguns movimentos, doravante mexeu o bico dele, revelando um boneco ventríloquo, que até então ocultava. Depois cochichou alguma coisa no ouvido do boneco, abaixou a cabeça e falou, baixinho, com movimentos minuciosamente minúsculos da boca: - Mamãe me disse para não falar com estranhos. Nah pensou, titubeou, pegou o lápis de olho de volta, riscou um balão de diálogo num lenço de papel branco com a frase: “Entendo... Mas e seu amigo?”. Não fala com estranhos também?”. Em seguida pegou outro lenço, escreveu entre parênteses” Ou é tímido demais?”, em letras garrafais. Nah e a garotinha riram. Nah trocara a ordem das mensagens acidentalmente. A garotinha respondeu usando o pingüim como porta-voz: - Falo, mas hoje tô doente... Preciso descansar – fazendo uma expressão triste com o rosto do boneco. A cara dele contrastava com a voz fanha e engraçada que a garotinha usava. Nah então percebeu que havia um termômetro colado com um band-aid, bem debaixo de uma das asas do pingüim. Conteve-se para não rir. Ponderou um instante:” não é nada fácil a vida dessas criaturas nos trópicos “. O dia estava muito quente mais uma vez, no entanto Nah ainda parecia incrédula: recusava-se a acreditar que pingüins de pelúcia sofriam de insolação. Talvez alguns dias numa geladeira confortável fariam bem, divagava. De repente, após uma nova mensagem de desembarque, a mãe da garotinha acordou assustada. Refeita do susto, um devaneio ruim, colocou a mão no rosto da garotinha, alisou-o por um instante e a abraçou com força, amassando o bico do pingüim de pelúcia e amarrotando o vestido rosa da filha. Levantou-se, pegou a filha pela mão e saíram pela porta recém-aberta. A garotinha despediu-se de Nah sorrindo, exibindo as janelas da casa de cálcio( o pagamento das fadas estava em dia), fazendo movimentos com uma asa e o bico amassado do pingüim.