sábado, 30 de agosto de 2008

A Carta Azul

Acorda cedo, levanta, lava o rosto, os papéis na gaveta não mentem: aconteceu mesmo. É estranho, ele imaginou que as coisas voltariam ao normal quando acordasse. Normal...Normais...Agora vê o quanto se acostumou aos padrões. Era fácil, só precisava repeti-los continuamente, dia-a-dia, de maneira mecânica, sem sentir, sem pensar, sem vida. Sente falta da rotina, é irônico, mas nela encontrava um porto seguro. Se acomodou, se acostumou, o doparam, o domesticaram, depois o dispensaram - trocou seu quadrado, seu círculo, por alguma forma e fórmula geométrica desconhecida. Ele pega o ônibus, nota um rosto familiar dentre tantos estranhos; se cumprimentam, dividem lástimas, boa fé, uma integridade repartida ao meio - ele até ignora o português vulgar e vencido de seu ilustre companheiro a prazo. Aguarda sentado um exame, uma sentença, que alguém, algo lhe diga que pode voltar pra casa. O médico responsável lhe chama, ele atende, entra numa sala com as paredes brancas repletas de réplicas baratas de quadros famosos - sob a mesa, caído, está um retrato em preto e branco antigo. Ela é jovem, loira, bonita, ele imagina que o sorriso dela talvez seja a única coisa autêntica ali. Os olhos do médico olham pro monitor do computador, enquanto o mesmo lhe faz as mesmas perguntas que são respondidas do mesmo jeito. Ele volta pra casa, espera o almoço e alguma coisa que não esteja no cardápio - lá fora suas crenças morrem de inanição.