sexta-feira, 23 de maio de 2008

AMÔRNICA: Mortis!

Dominique Sam Hain ostentava o título de cidadão do ano mais uma vez. Elegera-se pela terceira vez consecutiva. Chegara na cidade há 30 anos atrás, sozinho, carregando uma mala pesada na mão direita, a ambição nas costas e um paletó desabotoado na mão esquerda. Empreendedor, devoto de Rockfeller e Anúbis, fundou a primeira funerária da cidade 05 anos depois; assim que percebeu que a morte era um bom meio de vida. A ascensão prosseguiu com a aquisição de lotes de terra, transformados em cemitérios particulares, uma pequena companhia de seguros e dúzias de floriculturas. A morte era um ótimo negócio enfim. A funerária, curiosamente batizadaPaletó de Madeira”, ainda exibia o slogan da época de fundação:”PALETÓ DE MADEIRASEMPRE PENSANDO NO FUTURO”. Dominique também tinha senso de humor. Um senso desorientado de fato. Após anos convivendo com a Morte e Seus sorteados em roletas-russas, incêndios, acidentes domésticos, desastres aéreos, terrestres e marítimos, tiroteios, cânceres, deficiências cardíacas, doenças venéreas e uma infinidade de coisas que matavam, ele foi se esquecendo do medo que tinha dela. Porém, a Morte não esquecera dele. E ele lembraria-se dela em breve. Ela viria a galope.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

AMÔRNICA

Xavier nasceu num gueto de Santa Agnósia. Yai em novembro. Dois de novembro. Yai viera do campo, de um lugar onde havia animais, pastos e árvores bocejantes, mas logo que completou dois anos de vida, seus pais resolveram mudar – Yai mudaria de ares e lares. Mudaria de vida. Tudo de uma vez . Os pais, lavradores, abandonaram o campo, assim que os olhos de Yai tornaram-se a única coisa verde que restara ali.

Xavier e Yai moravam num apartamento de 20 metros quadrados, uma caixa de fósforos, alugada por Xavier e escolhida por Yai. Viviam encubados. Não tinham dinheiro para um isqueiro. Yai decorara-o com penduricalhos geométricos, mobília seminova ou quase nova, feita com madeira rústica, à prova de fungos e cupins de todas as espécies – até uma africana dissera a vendedora quando Xavier assinou a folha de cheque. Além de carpetes persas falsificados, espelhos e abajures e um sofá-cama na sala. Yai tinha sonhos. Mas isso não bastava. Precisava de algo que funcionasse na vida real. Talvez seus sonhos fossem grandes demais, não coubessem no possível. Yai não sabia, sonhava!. Dizem que uma mentira contada muitas vezes, se transforma numa verdade. Yai imaginava quantas mentiras seriam necessárias para se criar uma realidade. Ela não entendia. Não se importava com o que os outros pensavam. O que não pensavam parecia-lhe mais importante. Embora aquilo não fizesse sentido, ela sentia!. Xavier tinha um chevrolet vermelho 78. E um plano B que ainda não conhecia, mas usaria se o A não desse certo. Trabalhava numa funerária, ali mesmo, apenas algumas quadras do apartamento e o cemitério municipal. Fora corretor de apólices de seguros, carros e imóveis no passado. O novo emprego não era tão diferente do antigo. Tinha experiência com vendas afinal. O Sr. Sam Hain, dono da funerária, gostava dele e já estudava a possibilidade de uma aposentadoria. Deixaria que Xavier cuidasse de sua galinha dos ovos de ouro.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

SOBRE ANNA: Do Lado de Fora.

A Sra.Gossip estava mal-humorada naquela manhã. Insistia que o padeiro tentara lhe vender uma broa estragada. Voltou para casa de mau humor, sem a broa e um pouco mais convencida de que o ser humano era uma espécie em extinção. Hmpf...Hmpf...Hmpf...O som se alastrava pelos corredores da casa. Ela abriu repentinamente as cortinas do quarto e ficou observando a figura de uma estranha jovem que se afastava. A figura da jovem despertava-lhe estranhas sensações:

- Que moça estranha! – exclamava com um ar de desdém – no instante seguinte:

- Iodés...Ah, Iodés! – repetia enquanto alisava o ventre com um sorriso amarelo opaco. Cansada, sacou um molho de chaves enferrujadas, foi até a sala de estar, abriu um armário espaçoso e pegou uma caixa de sapatos. Retirou um frasco branco com uma tarja preta. Engoliu a seco os comprimidos. Esperaria alguns minutos e sorrateiro (embora calçasse botas de pedra), ele chegaria. O Sono nunca faltava aos compromissos agendados.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

SOBRE ANNA: Uma Colher de Sopa e Filosofia.

A árvore no quintal estava morta. Esperava o início da primavera para ressuscitar. Ela levaria as folhas secas do outono embora, traria flores e tingiria de amarelo outra vez a abóboda cinzenta de Anesthesia. Todavia ela não chegava. Por três longos anos Marlene Gossip esperava sua chegada. Ela não vinha. Os lábios murchos esboçavam uma frustração inequívoca. Era o sinal. O inverno seria mais longo outra vez – precisaria de lenha, boas garrafas de vinho, chocolate, malte, calmantes, prozac e algumas doses extras de paciência. Na árvore a Sra.Gossip talhara com uma faca de cozinha a palavra ”Sperantia”. Retirou a palavra de um dicionário de latin, cheio de páginas amareladas, com parte da capa dura arrancada, mas que ainda mantinha intacto os verbetes escritos em letras maiúsculas. Convencera o supersticioso atendente da biblioteca de Anesthesia a vender-lhe sem muita resistência. A Sra.Gossip gostava de ler durante as refeições. Não era raro vê-la com uma colher de sopa na mão direita, um volume encadernado na esquerda, e óculos, cujas a lentes de lupa faziam frente a Scotland Yard, saboreando aspargos e idéias com satisfação. Lia Sócrates, Platão, Aristóteles, Anaximandro, Heráclito, Empedócles, Demócrito, Xenófanes e todos aqueles filósofos e poetas gregos com nomes esquisitos e difíceis de pronunciar. Queixava-se pela falta de elegância nos autores contemporâneos. Nada lhe agradava.”Vulgar, mórbido, melancólico, romântico demais, um horror!” – dizia.